Autora: Fabiana Benetti (*)
Neste texto, trabalharei a temática da expressão e repressão do feminino como uma ambivalência com a qual vivemos na atualidade. Esta reflexão vem através das últimas premiações do Oscar.
A 97ª edição dos prêmios Oscars (2025), realizada recentemente, foi marcada por diversas controvérsias. A vitória do filme independente "Anora" nas principais categorias, incluindo melhor filme, direção para Sean Baker e atriz para Mikey Madison gerou discussões sobre a representatividade e a abordagem temática da obra.
A premiação do Oscar é feita pela indústria cinematográfica e leva em conta critérios artísticos, comerciais e políticos complexos. Ele não tem como intenção a produção de justiça social, mas as questões levantadas pelas premiações são muito pertinentes para a vida e as discussões éticas contemporâneas.
Assim sendo, ele gerou debates em diversas frentes, incluindo questões sobre etarismo, objetificação das mulheres (por exemplo, ao romantizar a prostituição) e machismo.
Talvez a principal polêmica tenha sido a premiação da jovem atriz Mikey Madison, de 25 anos, em detrimento das atrizes mais velhas Fernanda Torres (59 anos) e Demi Moore (62 anos), também consideradas favoritas ao prêmio.
O filme "Substância", dirigido e roteirizado por Coralie Fargeat, foi um filme corajoso, com uma atuação potente de Demi Moore e uma forte crítica ao imperativo da beleza jovem. Mas a academia acabou por premiar especificamente uma jovem que faz um papel bastante sexualizado. Ironicamente, a mesma Demi Moore foi muito criticada anos atrás por sua atuação sexualizada no filme "Striptease" (1996), no qual ela atuava como stripper, assim como Anora. É como se a premiação confirmasse a premissa do filme "Substância": só a mulher jovem e adequada ao padrão estético imposto pela sociedade capitalista, patriarcal e normativa tem valor para a indústria.
Podemos pensar que a premiação, assim, produziu um apagamento da denúncia que o filme "Substância" produz em relação à ditadura da beleza jovem imposta a qualquer custo sobre as mulheres mais velhas. Pressão estética e obsessão pela juventude; as mulheres enfrentam uma pressão constante para recorrer a procedimentos estéticos para esconder os sinais naturais do envelhecimento e suas histórias. Expressões, rugas, cabelos brancos e mudanças no corpo são patologizados como algo a ser combatido enquanto, nos homens, estes mesmos sinais costumam ser associados à experiência e ao prestígio. Em "Substância", a realidade que vivemos pela ditadura da beleza e as deformações monstruosas que de fato isto gera são levadas ao absurdo. Demi Moore representa muito bem esta tragédia tão atual.
Não se trata de falar mal do filme "Anora", mas também de evidenciar que, mesmo nele, há uma redução do feminino, uma vez que a personagem é privada de história e contexto pessoal: ela é apresentada apenas como uma stripper que se apaixona pela ideia de ser salva por um homem rico. Tudo aqui evoca o filme clássico "Uma linda mulher" (1990). Neste último, a salvação é mesmo operada pelo príncipe Richard Gere que aparece ao final com seu cavalo branco transmutado numa limusine. Anora tem um desfecho mais realista e belo, uma vez que o suposto príncipe- filho de um oligarca russo- revela-se um menino mimado pelo poder aquisitivo dos pais, inconsequente e desumanizado; a solução dramática se dá pelo encontro de Anora com o afeto, ao ter finalmente sido vista de forma humanizada (não objetalizada) por outro personagem. Apenas ao final ela sai da atuação maníaca e pode ser uma mulher que sente. E chora.
Com relação a Fernanda Torres e ao filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles, que narra a história de Eunice Paiva e aborda sua luta após o desaparecimento de seu marido durante a ditadura militar brasileira, há o apagamento dessa mulher brasileira de sessenta e poucos anos. Isto pode refletir a dificuldade das mulheres brasileiras em se inserirem em projetos globais que, em geral, favorecem uma narrativa mais alinhada a padrões de Hollywood ou ao protagonismo de outros talentos. O reconhecimento de atrizes brasileiras já se deu por papéis estereotipados, como na eterna Carmen Miranda ou também com o estigma sexualizado, como em Sonia Braga. A atuação sóbria, densa e sofrida de Fernanda Torres sobre aquela mesma ditadura fomentada pelos EUA até conseguiu a indicação de melhor atriz e a premiação como melhor filme internacional, mas não atravessou a barreira do reconhecimento como melhor atriz internacional.
Ainda hoje, vivemos um machismo acirrado, embora tenha havido avanços importantes na luta pela igualdade de gêneros. Vale ressaltar a importância de tantas produções de alto nível que tratam a feminilidade em espectros amplos, denunciando o machismo em todos nós. A resistência destas mulheres potentes mostra caminhos da expressão do feminino, enquanto os apagamentos que apontei denunciam o quanto o machismo opera a repressão sobre o mesmo.
Na premiação do ano passado, o filme que ganhou como melhor filme e melhor atriz foi "Pobres criaturas" (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos. A personagem Bella Baxter, representada por Emma Stone, é uma mulher adulta na qual foi implantado um cérebro de bebê. De forma original, o filme mostra a expressão singular de uma feminilidade não submetida ao patriarcado, portanto, amoral, espontânea e livre para habitar sua natureza que é construída ao invés de encontrada. Seu saber não é racializado, generificado, dividido em classes e localizado. O modo de Bella ser no mundo pode nos inspirar a tecer os fios de nossa relação com a vida. Quando podemos narrar o mundo à nossa maneira e com nossas palavras, podemos reinventar nossa natureza.
Este texto foi produzido a partir de interlocuções com Muna Zeyn num encontro do grupo de estudos sobre o envelhecimento do Instituto Sedes Sapientiae ao qual pertenço e com o psicanalista Pedro de Santi.
* FABIANA BENETTI
-Psicóloga graduada pela Universidade Paulista(1997);
-Aprimoramento em Analises do comportamento aplicado(ABA) United Response ,Londres,2001;
-Pós Graduada em Cross Cultural Psychology pela Brunel University em Londres, 2002;
- Psicanalista com especialização em psicossomática no Instituto Sedes Sapientiae,2005-2014;
-Aprimoramento na psiquiatria infantil no IPQ ( Hospital das Clínicas)2013-2016;
-Membro do Departamento de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae;
-Agenciamento em Filosofia e Esquizoanálise com Peter Pál Pelbart e Luiz Fuganti;
-Atendimento em consultório particular em São Paulo-
Tel/what´s 11 985363035;
Nota do Editor:
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Muito bom o texto!!!
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