segunda-feira, 2 de março de 2020

A (dura) realidade dos médicos brasileiros formados no exterior



Autora: Fabiana Raslan(*)


Há muito o Brasil integra a comunidade internacional como signatário de diversos acordos internacionais para cooperação de saúde e educação. Até o fim da década de 2000, o Brasil eximiu de implantar políticas públicas para cumprimento efetivo de tais acordos, violando a legislação interna e internacional. O país ainda caminha a passos de formiga para uma projeção de excelência no cenário internacional regional e mundial. Entretanto, de 2009 até o impeachment, os avanços foram significativos.


Atualmente, no que se refere especificamente ao tema deste brevíssimo parecer, vige a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a qual confere competência exclusiva às universidades públicas para revalidar diplomas estrangeiros: 



"Art. 48 § 2º da Lei 9.394/996: Os diplomas de graduação expedidos por universidades estrangeiras serão revalidados por universidades públicas que tenham curso do mesmo nível e área ou equivalente, respeitando-se os acordos internacionais de reciprocidade ou equiparação."
O dispositivo legal é regulamentado pela Resolução nº 3/2016 da Câmara Superior do Conselho Nacional de Educação e subsidiado por duas Portarias Normativas do Ministério da Educação: Portaria nº 278/2011/MEC/MS que institui o Revalida e a Portaria Normativa nº 22/2016/MEC, que dispõe sobre normas e procedimentos gerais de tramitação de processos de solicitação de revalidação de diplomas de graduação estrangeiros.

Quanto ao Revalida, embora a Portaria tenha estabelecido uma Matriz Curricular, o que pode ser considerado certo avanço no reconhecimento do direito fundamental ao exercício da profissão - art. 5º, XIII da CRFB - o exame realizado pelo INEP anualmente aprovava em média 50% dos inscritos até 2015. Após o impeachment, o exame passou a ter nota de corte alta e irregularidades na aplicação e correção das provas.[1]

De outro giro, foi publicada a Resolução nº 3 da Câmara Superior do Conselho Nacional de Educação, que revogou a anterior de 2002, e a Portaria Normativa nº 22, que foi publicada em dezembro 2016 em atenção à Resolução nº 3 do CNE/MEC, de junho do mesmo ano.

O novo sistema foi ofertado aos Reitores das instituições públicas a fim de subsidiar os processos de revalidação de diplomas estrangeiros e representa um avanço sobretudo no que se refere aos acordos oriundos do Mercosul, como o Sistema Arcu-Sul[2].

A legislação regulamentadora resulta de um trabalho profícuo de qualificação das instituições de ensino superior, que vem sendo realizado pelas Agências dos países signatários, no sentido de exigir qualificação suficiente para reconhecimento internacional destas instituições, como uma certificação e garantia de qualidade. 
Do sistema Arco-Sul/Mercosul

O Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação é resultado de um Acordo entre os Ministros de Educação de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, homologado pelo Conselho do Mercado Comum do MERCOSUL através da Decisão CMC nº 17/08. As entidades competentes de cada país executam a avaliação e acreditação de cursos universitários, e é gerenciado pela Rede de Agências Nacionais de Acreditação, no âmbito do Setor Educacional do MERCOSUL[3].

O Sistema respeita as legislações de cada país e a autonomia das instituições universitárias, e considera em seus processos apenas cursos de graduação que tenham reconhecimento oficial em seu país e com graduados. Assim, oferece garantia pública, entre os países da região, do nível acadêmico e científico dos cursos.

O nível acadêmico é estabelecido conforme critérios e perfis tanto ou mais exigentes que os aplicados pelos países em seus âmbitos nacionais análogos[4]

Do Portal Carolina Bori - Portaria Normativa 22/2016/MEC

O Portal foi instituído pela Portaria 22/2016 para subsidiar as instituições revalidadoras - http://carolinabori.mec.gov.br - para todos os cursos superiores inseridos nos sistema, as revalidações vêm sendo realizadas pelas instituições de ensino que aderiram. 

No que se refere especificamente ao curso de Medicina, a referida normativa é solenemente ignorada e/ou violada pelas instituições, seja por afronta ou qualquer outro motivo, como ocorreu com a Faculdade de Medicina da UFMS (causa que patrocino na Justiça) e agora na UERN como foi comunicado ao Ministério Público Federal.

Fato é que as Universidades se abstém do processo quando o assunto é revalidar diplomas médico, divulgam editais e resoluções regidos pela Portaria Normativa nº 22, porém quando o requerente apresenta sua documentação, alegam que para diplomas médicos a "única forma" de revalidar é por meio do Revalida -INEP (sem nem mesmo a instituição estar aderida a tal exame), portanto, não caberia revalidar os diplomas por meio da referida normativa.

Atualmente, apenas a UFMS, UFMG e revalidaram diplomas de acordo com as regras, e a UEMA ofertou vagas para processar. São mais de 140 instituições públicas de ensino que estão no Portal.

Curioso notar que revalidações dos diplomas de outras carreiras são revalidados regularmente por estas mesmas instituições…Da excelência das instituições estrangeiras. 

A principal razão para os brasileiros cursarem medicina no exterior é poder estudar em instituições de excelência por valores acessíveis, ou ainda, em instituições públicas de excelência reconhecida no mundo, como ocorre com as instituições Argentinas ou de tradição, como são as do Paraguai e Bolívia[5], com as quais o Brasil mantém convênios há muitos anos.

De certo que a formação dos médicos nas escolas brasileiras têm ênfase em certo tecnicismo incompatível com as exigências da legislação brasileira - Lei 8080/90 - a qual institui o Sistema Único de Saúde - cuja exigência é no sentido de prestação e serviços de saúde em caráter universal e igualitário, como se verifica no art. 7º do referido diploma.
  
Do Programa Mais Médicos para o Brasil como aperfeiçoamento

Procurando atender os princípios da legislação que institui o SUS, o governo anterior implantou o Programa Mais Médicos - Lei nº 12.871/ 2013, resultando de acordo internacional dos países que integram a OPAS – OMS.

O Programa consiste basicamente na melhoria do atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), levando médicos para regiões onde há escassez ou ausência desses profissionais além da oferta de novas vagas de graduação e residência médica para qualificar a formação desses profissionais. A Lei 12871/2013, que regulamenta o Programa, prevê a reformulação da matriz curricular das escolas de medicina para atendimento às políticas públicas de promoção de saúde.

O curioso é que os médicos formados no exterior já tem formação neste sentido, vez que é comum nas universidades dos países onde estudam o ensino voltado para a atenção básica e para a medicina da família. É o caso das universidades cubanas que têm excelência mundialmente reconhecida. Ademais, é comum este tipo de formação em muitas instituições bolivianas, paraguaias e argentinas, daí a facilidade e naturalidade com que estes profissionais desempenham as funções no Programa, ao passo que os profissionais formados no Brasil em tantos casos apresentam perfil profissional incompatível com as atividades desenvolvidas - Atenção Básica, Medicina da Família e Saúde Indígena.

Os Conselhos e entidades privadas que representam os médicos formados no Brasil se levantaram desde sempre contra as ações do Programa e sua estrutura e objetivos. E não mediram esforços para impedi-las desde a votação no parlamento até a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, as quais foram julgadas improcedentes pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2017, considerando-se a lei que rege o Programa inteiramente constitucional, e, portanto, válida, o que vincula a Administração Pública e o Poder Judiciário, conforme determina a Constituição da República em seu art. 102 § 2º.

Hoje há um número relevante de médicos brasileiros formados no exterior prestando serviços às comunidades, os quais exercem as mesmas funções que um médico formado no Brasil com registro no Conselho de Medicina. Em que pese obterem formação e treinamento por parte das instituições de ensino superior - universidades públicas - vinculadas ao Programa pelo Sistema UNA-SUS, não tem seu diploma de graduação reconhecido. O aperfeiçoamento obtido no Programa é previsto expressamente na Lei: especialização em Medicina da Família e Atenção Básica e residência médica por três anos. Ao final de um ciclo de três anos, não podem obter a revalidação de seu título de graduação porque as instituições simplesmente se recusam a observar a legislação. 

A situação atual
      
Há aproximadamente quatro mil médicos brasileiros formados no exterior atuando no Programa Mais Médicos hoje, e com data marcada para que estes contratos findem. Estima-se que haja mais de dez mil sem revalidação. A razão principal se encontra na omissão das universidades brasileiras, que simplesmente se negam a realizar o processo administrativo de revalidação, que é um serviço público. O Brasil tem diversos acordos internacionais com universidades dos países da América Latina.

O problema da revalidação é antigo e cuja solução vai de encontro aos interesses das entidades médicas privadas do país. Além destes Acordos, há um Acordo que visa o aperfeiçoamento dos médicos em matéria de Atenção Básica e Medicina da Família - prioridades do nosso SUS.

O Arco-sul/Mercosul - http://edu.mercosur.int/arcusur/index.php/pt-br/descricao/122-sistema-arcu-sul - é um trabalho que vem sendo realizado pelos Ministérios da Educação dos países signatários no sentido de garantir a qualidade de formação dos médicos, dentre os quais um sem número de brasileiros que estudam nestas instituições, por terem valor mais acessível do que as multimilionárias instituições de ensino brasileiras.

A ideia é formar profissionais qualificados para Atenção Básica, diferentemente da formação tecnicista predominante nas instituições de ensino brasileiras. O MEC editou Resolução em julho de 2016 (Res. 03/CNE/MEC) regulamentando as revalidações dos diplomas para que os brasileiros possam retornar ao país e exercerem a medicina que aprenderam, mas as universidades, embora tenham aderido ao Portal Carolina Bori - http://carolinabori.mec.gov.br - plataforma que subsidia os processos de revalidação - simplesmente se recusam a ofertar vaga para medicina. O Portal funciona para todas as carreiras do Acordo Arco-Sul, exceto para medicina… sabemos bem o porquê.

Em dezembro do ano passado, o Presidente promulgou duas leis: uma que institui o novo Programa Mais Médicos, alijando qualquer profissional que não tenha diploma revalidado, e (pasmem!) criando uma OS liderada por representantes de entidades médicas privadas para gerir o Programa; outra que institui o Revalida, o exame nacional de revalidação, a ser 100% financiado pelo próprio médico a ser realizado por um agência norte-americana.
Dá para imaginar no que estão transformando a saúde pública no Brasil e para onde vai no nosso SUS…
      
Sou advogada militante na causa pelo reconhecimento dos médicos em prestigio à obediência à legislação interna e internacional e enfrento diariamente a omissão das instituições de ensino e a conivência de juizes de primeiro grau, os quais negam pedidos de tutela jurisdicional afirmando que as universidades são autônomas, contrariando a jurisprudência dos Tribunais. Os magistrados confundem a autonomia didático-cientifica do art. 207 da CRFB/88 com soberania, atributo exclusivo dos Poderes, dentre os quais o Poder Executivo, que celebrou os Acordos e é competente para determinar as politicas públicas para desenvolvimento da Educação, as quais submetem toda a Administração Pública, inclusive as autarquias universitárias. As universidades detém apenas a competência imposta pelo art. 48 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação para realizar o processo administrativo de revalidação, mas não estão autorizadas a deixar de prestar o serviço, sobretudo aos brasileiros interessados.

O tema é mais complexo do que este espaço me permite, no entanto, asseguro que há MÉDICOS BRASILEIROS FORMADOS NO EXTERIOR, e portanto, qualificados para Atenção Básica e Medicina da Família, como é típico da formação ofertada pelas faculdades que integram o Sistema Arco-Sul, em número suficiente para dar conta, muito bem obrigada, do nosso SUS. O problema está na pressão política exercida sobre o governo de grupos econômicos liderados pelas entidades médicas privadas. Ao que parece, a grande mídia silencia quanto à existência destes médicos. Só eu concedi quatro entrevistas para programas de rádio e tv, inclusive da Globo, as quais jamais foram ao ar.

Parece que o Mais Médicos se resume aos cubanos. E isto está longe da realidade. Espero sinceramente que algum repórter investigativo se interesse pelo tema e pelas informações que posso prestar a respeito desta dura realidade. Não espero publicidade nem projeção alguma, já suporto bastante pressão de pessoas que exploram como 'mercado' este sistema excludente.


REFERÊNCIAS

[1] Há diversas ilegalidades cometidas pelo Instituto, no que se refere as garantias constitucionais dos candidatos, o que já foi objeto de ações judicias vitoriosas na Justiça Federal, um exemplo seria o exame de 2016. Ademais, o conteúdo das questões propostas contraria os protocolos do Ministério da Saúde, sem falar nas divergências bibliográficas e nos procedimentos desatualizados que adota como gabarito. É comum o relato dos médicos participantes no sentido de que os recursos não são corrigidos, além do que, as filmagens nas quais constam o desempenho dos participantes da segunda fase - prova de habilidades clínicas - não são franqueadas aos médicos participantes, cláusula editalícia afastada por ordem judicial obtida nas ações que patrocino. Atualmente, encontra-se em fase de julgamento pelo Tribunal o pedido de anulação das questões que violam frontalmente a lei e os Protocolos do Ministério da Saúde. 

[2] O Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação do MERCOSUL (ARCU-SUL) é resultado de um Acordo entre os Ministros de Educação de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, homologado pelo Conselho do Mercado Comum do MERCOSUL através da Decisão CMC nº 17/08. O sistema executa a avaliação e acreditação de cursos universitários, e é gerenciado pela Rede de Agências Nacionais de Acreditação, no âmbito do Setor Educacional do MERCOSUL.Veja-se em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13454:acr


[4] Idem. 

[5] Universidad Mayor Real Y Pontificia De San Francisco Xavier De Chuquisaca (Bolívia) por exemplo, tem 400 anos de existência e recebe muitos brasileiros. A Universidade de Buenos Aires não tem vestibular mas está na frente da USP no ranking mundial.

* FABIANA RASLAN 


Advogada especialista em Direito Público (EMERJ), militante em Processo Constitucional e Mestre em Ciências Sociais (UFRRJ).














Nota do Editor:

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