segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Aos quinze


 

Autora: Maria Lucia Mazzei de Alencar(*)


Estávamos em março de 1964. Madre Assunção, que eu chamava na intimidade "O Dragão" pelas broncas candentes que me lançava, entrou rápida e ansiosamente na nossa classe de 4.ano ginasial, atual oitava série. "Vocês estão acompanhando as notícias? Sabem que houve uma enorme passeata pela família com milhares de mães, pais, gente da Igreja, para impedir que o Brasil vire um País comunista? É chegada a hora de vocês, meninas, também darem a sua cota de sacrifício pessoal". Ante o nosso olhar perplexo anunciou: "já falei com as classes B e C e a maior parte da turma concordou: desistam do baile de formatura pelo bem do Brasil!!

Meus desentendimentos com Madre Assunção vinha de tempos antigos. Quando menina tinha feito o primário, até meus 10 anos, naquela escola, Maria Imaculada. Era apaixonada pelas freiras e queria ser uma delas. Quando voltei para a primeira série, aos 11, estava transformada. Lia quase tudo o que conseguia surrupiar da biblioteca de casa e não demorou muito para que as freirinhas, espanholas, fossem consideradas franquistas por mim. Desde que a Madre convencera meu pai a me vetar o acesso à biblioteca, após eu opinar em classe que "O Crime do Padre Amaro", do Eça, não merecia estar no Index da Igreja, minha raiva só aumentava. Nossos embates eram dia sim, outro também.

Fiquei de queixo caído pela audácia da Madre. Ela vinha torpedeando nossos planos, antes tinha convocado as mães que organizavam nossa festa para dizer que a Escola não aprovava e não apoiava. Propunha uma viagem e algumas freiras, ela inclusive, se dispunham a acompanhar. Minha mãe que fazia parte do comitê quis então desistir. Quase morri de susto. Mas as outras mães a dissuadiram.

Naquele dia lutei com tenacidade. "Nunca!! Ergui-me feito boneca de mola e me pus a falar alto, defendendo nosso baile. "É uma comemoração tradicional, com algum glamour, a que temos direito. E muito familiar, funciona também como um "debut" na sociedade. E o Brasil não se tornará comunista. Não é necessário nenhum esforço de nossa parte. Até porque os militares estão infelizmente interferindo, ao que parece poderá haver um golpe de direita no pobre Presidente Jango", informei à classe que não lia jornal e não acompanhava o noticiário. “"Ora, ora, como a Srta. Alencar pode ser contra? Além de rebelde é comunista também?" "Não sou comunista, prezo a liberdade. Mas estou revoltada com o possível golpe, conversei com papai. Se houver, vai 
ferir de morte a democracia".

Uma colega diplomata acalmou os ânimos: "vamos todas pensar com calma na proposta da nossa querida Madre Assunção e a defesa do nosso baile feita pela nossa Pimentinha".

Nunca fui tão convincente. Nas rodinhas do recreio, nos intervalos das aulas ia fazendo a pregação pró- baile. Algumas meninas já tinham eleito seus pares para a valsa e assim não cederiam tão fácil. Outras ficaram em dúvida e a Madre tinha adeptas com receio de desagradá-la. Perdemos várias adesões o que encareceu a nossa festa. Mas fizemos uma reunião em casa, as mães entendendo nossa avidez com aquele baile, mamãe não muito favorável, mas foi elegante e simpática como sempre e fechamos os custos. Ficou viável.

Daí foi partir para a organização e encomenda do vestido. No segundo semestre implorei a meus pais para me pagarem um professor particular, nunca o fizeram e minhas notas eram péssimas, matemática era um problema. Felizmente ia para o "Clássico", voltado para as matérias humanas; a outra opção do Colegial, era o "Científico", com ênfase nas exatas. Fui à luta, arrumei um professor velhinho com preços bem baratos e consegui as notas para me formar com a minha turma. Teria cabimento se eu repetisse de ano? Nunca o fizera e na quarta série do ginásio a ideia me era absurda.Queria me formar com a minha turma.

Coloco aqui a foto do famoso baile. Foi um estouro. Tivemos a ótima Orquestra do Dick Farney, com ele cantando. O salão era no chic Fasano, no segundo andar do Conjunto Nacional na Paulista, com terraços, acessível com linda escadaria. Papai conseguiu que o célebre jornalista social Tavares de Miranda apresentasse as formandas, sem custo. Nas valsas, a primeira foi com papai que estava muito garboso, ele dançava muito bem; a segunda, era com o irmão mais velho e Rui, com seu smoking, estava muito bonito e foi treinado para a ocasião. A terceira valsa era destacada para o namorado ou o flerte ( a palavra paquera não existia então, muito menos ficante): como não tinha nenhum, nem outro, meu par foi um amigo, feioso, não tive o prazer de um amado. Mas eu estava muito feliz. Estávamos, todas, muito felizes!


*MARIA LUCIA MAZZEI ALENCAR













-Escritora, amante da boa literatura e de cinema;
-Vencedora dos segundo e terceiro lugar do prêmio Acesc de Literatura( Associação dos 20 maiores e tradicionais clubes da cidade de São Paulo ( com exceção dos de futebol);
-Aluna das Arcadas, ( Direito da Usp), formou-se em 1972, 
Procuradora do Estado de São Paulo aposentada, atualmente Advogada.

Nota do Editor:

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5 comentários:

  1. Bons tempos! Me formei no ginasial nesse mesmo ano. Inesquecível. Parabéns pelo texto, e obrigado pelas lembranças!

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  2. Delícia recordar nissis encantos dis 15 anos. Certamrnte todas as suas colegas dd classe se lembram desse baile

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  3. Ótimas lembranças e texto delicioso.

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  4. Que relato lindo! Quando vejo esses relatos, de uma mulher a frente do seu tempo, que soube e teve coragem desde sempre de lutar por suas vontades e conquistá-las, por um lado me sinto feliz e orgulhosa por seus feitos e triste por eu ter sido uma covarde "da paz". Que vc continue voando alto caríssima Maria Lúcia!

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  5. Que texto maravilhoso. Me vi dentro da sala de aula vendo o "dragão" entrar. Depois nos conte com detalhes sobre o episódio do Crime do padre Amaro. Adorei o texto.

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