quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Proteção do Bem de Família que é aplicada às novas Entidades Familiares


 Autora:Josane Hoehr Landerdahl de Albuquerque(*)

 
O bem de família legal surgiu com a promulgação da Lei nº 8.009/1990, cuja intenção é a preservação da moradia do devedor, por força do interesse público, não permitindo que aquela seja passível de expropriação para a satisfação de dívidas.

Essa Lei, por meio do caput de seu artigo 1º, sintetiza seu escopo quando estabelece que "O imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas em Lei."

Segundo Pablo Stolze o bem família é "o bem jurídico cuja titularidade se protege em benefício do devedor ¾ por si ou como parte integrante de um núcleo existencial ¾, visando à preservação do mínimo patrimonial para uma vida digna." [1]

Em última análise, a vontade da lei se destina a preservar a dignidade da pessoa humana através da proteção de um patrimônio que, colocado a salvo dos credores, preserve a própria entidade familiar.

A constante transformação social gerou novos tipos de entidades familiares, os quais também se encontram sob a proteção constitucional e, por consequência lógica, do direito das famílias, uma vez que consideramos que a expressão entidade familiar engloba todos os tipos de famílias.

Nesse sentido, é a lição de Rita de Cássia quando afirma que "o conceito de entidade familiar, na esfera jurídica, deve ser interpretado segundo as transformações operadas na família, como organismo social"[2], o que corrobora a ideia de que entidade familiar é uma expressão para designar a família, qualquer que seja a sua configuração.

Portanto, nessa linha de raciocínio, o instituto do bem de família legal pode ser aplicado a qualquer tipo de entidade familiar, de modo a resguardar sua moradia em situações que possam colocá-la em risco.

A jurisprudência pátria já coloca a salvo dos credores o imóvel onde residem devedores solteiros ou viúvos que moram sozinho (entidade unifamiliar), aplicando a interpretação sistemática da Lei nº 8.009/1990 em consonância com o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil e com o art. 6º da nossa Carta Magna, consagrando, assim, o direito fundamental de qualquer cidadão à moradia.

Porém, a Lei nº 8.009/1990, a priori, protege o imóvel onde o devedor reside, ou seja, um único imóvel, excluindo dessa proteção outros imóveis que o devedor possa ter.

Ocorre que, diante da evolução social que gerou diversos tipos de entidades familiares, novos arranjos surgiram entre os membros dessas entidades relacionados à moradia.

Assim, podemos encontrar membros de uma família de pais separados residindo em um imóvel cujo proprietário ocupa um outro imóvel, com sua nova família, o qual também lhe pertence.

Nesse cenário, qual imóvel estaria a salvo dos credores em caso de execução? A resposta mais provável seria aquela que indicasse o imóvel onde reside o devedor. Entretanto, pela interpretação sistemática e teleológica da Lei, é cediço que todos têm direito à moradia, tanto a família anterior como a atual.

Assim, os julgadores passou a enfrentar um dilema, o qual tem sido dignamente solucionado, pois embora a Lei se refira ao "imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar", atualmente a jurisprudência vem decidindo no sentido de que podem ocorrer situações em que mais de um imóvel de um único proprietário possa ser protegido pela Lei nº 8.009/1990.

Nem sempre o imóvel da família pertence a um dos residentes, que, em caso de execução do proprietário/devedor, poderia vir a ser penhorado. Neste caso, vindo o proprietário do imóvel a ser executado, é imperioso levar em consideração o sentido social do texto da lei que é garantir um teto para cada entidade familiar, conferindo efetividade à regra constitucional, preservando não só a moradia do devedor como também aquela ocupada por outros membros de sua família.

A jurisprudência não destoa dessa interpretação conforme se depreende do voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva seguido pelos integrantes da Terceira Turma do STJ, por unanimidade:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.126.173 - MG (2009⁄0041411-3)

RELATOR:MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA

RECORRENTE:MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

RECORRIDO:SILDA GONÇALVES DA COSTA E OUTROS

ADVOGADO:ARTUR ALEXANDRE MAFRA E OUTRO(S)

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO.EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL NO QUAL RESIDEM FILHAS DO EXECUTADO.BEM DE FAMÍLIA. CONCEITO AMPLO DE ENTIDADE FAMILIAR.RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA.

1. "A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009⁄90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia" (EREsp 182.223⁄SP, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6⁄2⁄2002).

2. A impenhorabilidade do bem de família visa resguardar não somente o casal, mas o sentido amplo de entidade familiar. Assim, no caso de separação dos membros da família, como na hipótese em comento, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge em duplicidade: uma composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um dos cônjuges. Precedentes.

3. A finalidade da Lei nº 8.009⁄90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas, sim, reitera-se, a proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo.

4.Recurso especial provido para restabelecer a sentença.

Portanto, não só a residência do devedor deve ser protegida pelo manto da impenhorabilidade, mas também aquela utilizada por outros membros da entidade familiar, vislumbrando, assim, na aplicação da Lei nº 8.009, a possibilidade de haver pluralidade de bens protegidos pertencentes ao mesmo devedor.

Nem o legislador nem o Estado poderiam prever o alcance que teria a norma diante do surgimento de novos tipos de entidades familiares como consequência da evolução natural da sociedade. É necessário, por conseguinte, uma interpretação mais ampla do art. 226 da Constituição Federal, bem como da Lei nº 8009/1990, considerando não apenas a letra da lei, mas o seu sentido social maior que é a preservação da dignidade humana, princípio consagrado no art. 1º, II, da Constituição Federal como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

Conclui-se, assim, que é possível aplicar o instituto do bem de família aos novos tipos de famílias com vistas à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana através da proteção do direito fundamental à moradia de cada cidadão.

REFERÊNCIAS

[1]GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil Volume 6: Direito de Família – A família em perspectiva constitucional/ Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho.2 ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: 2012, p. 395 e

[2]VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A Impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades familiares. São Paulo: RT, 2002, p. 140.

*JOSANE HOEHR LANDERDAHL DE ALBUQUERQUE


















-Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB (1999);
-Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2006);
Pós-graduada em Direito Empresarial , Contratos, Responsabilidade Civil e Família pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP   (2019); 
-Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seção do Distrito Federal sob o nº 16.206;
-Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) desde 2015;
-Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, especialmente Direito de Família.-Idioma: inglês e
-Advogada Sócia do Escritório Freitas, Landerdahl & Advogados Associados desde a sua fundação.

 Nota do Editor:

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