sábado, 31 de agosto de 2024

Uma Educação da Razão


 Antonio Carlos Jesus Zanni de Arruda(*)

Para o Racionalismo de Descartes[1], só temos conhecimento a partir de "idéias claras e distintas", conforme o mesmo afirma, através de um trabalho da razão, já que quando nos pautamos pela experiência incorremos em erro, pois no mínimo esta já nos enganou pelo menos uma vez, de acordo com o argumento da dúvida nas "Meditações Metafísicas".

Esse percurso, que objetiva em primeiro lugar duvidar de tudo aquilo que foi fornecido pela experiência, estabelece uma certeza inabalável em Descartes que é a certeza do pensar, a capacidade que a razão possui em interpretar o mundo de um modo certo e seguro e isso é um trabalho da razão humana, o que para Descartes se configura como um fator emancipatório do existir, elevando a razão humana ao seu mais alto grau de perfeição, conforme assinalado no "Discurso do Método". Portanto, a razão deve ser educada de modo que não cometa erros.

O ato de perceber as coisas é fornecido pelos sentidos; mas, o ato de compreender como as coisas são é fruto de uma organização da razão, Diz ele que percebemos as modificações nele ocorridas, porém o ato de compreender é um trabalho da razão (do sujeito).

Neste artigo, pretendemos abordar o que denominamos por uma Educação da Razão, quando a mesma se torna "errante", quando conferimos à experiência o poder explicativo das coisas e "razão emancipatória" (educada pela razão), àquela que determina o poder organizador e de compreender as coisas como são, razão esta quando bem conduzida (o método, que garante o educar da razão).

Para Descartes, o Conhecimento verdadeiro, que nos dá a certeza e evidência sobre as coisas ("Clareza e Distinção"[2]), é produto de um trabalho da razão. A experiência não nos dá a conhecer verdadeiramente as coisas em si mesmas, portanto, todo conhecimento centrado na experiência nos remete diretamente ao erro.

Para reconstruirmos seu raciocínio sobre esta questão, nos dedicaremos à análise do texto clássico, que oferece as bases do pensamento moderno, as "Meditações Metafísicas".

Sabemos da forte influência do Ceticismo sobre o pensamento de Descartes e a maneira cética como inicia as suas meditações, colocando em dúvida tudo aquilo que apresentar a menor possibilidade de erro ou falsidade.

O primeiro argumento construído no 3º. parágrafo é o de duvidar (suspender os juízos) sobre os sentidos, pois são fontes constantes de erros e ilusões e que nunca podemos tomá-lo como base para conhecimento das coisas (já que por ausência de racionalidade, conduz a razão a um caminho enganoso). Citemos alguns exemplos que corroboram este argumento:
1- Se estamos no porto e vemos um navio distante, ele parece pequeno e parado; quando se aproxima vemos que, relativo a nós, ele é grande e está em movimento;
2- Um remo, metade na água e metade fora, parece quebrado; e
3- Existe uma limitação natural nos nossos sentidos, que nos levam a considerar de forma errada as coisas. O Sol parece girar em torno da terra.
Portanto, os sentidos não nos dão a conhecer as coisas e constituem-se em uma fonte inesgotável de erros e ilusões, implicando num conhecimento falso ou numa "razão errante". Encontramos, neste primeiro grau da dúvida, uma desqualificação do elemento sensível (da experiência) para a formação do conhecimento verdadeiro. Posição que será mantida, durante o texto ("Meditações Metafísicas"). Neste primeiro argumento Descartes já afirma que todo o conhecimento que se pauta na experiência como fundamento, incorre em erro, numa razão sem sentido, sem atingir a verdade.

No segundo argumento, que estende e radicaliza a dúvida, Descartes pondera sobre a limitação do argumento anterior (erro dos sentidos), pois me enganar com relação às coisas distantes e pouco sensíveis não me dá possibilidade de duvidar de todas as questões sensíveis, como, por exemplo, que eu esteja aqui sentado junto ao fogo e vestido com este chambre.

Descartes, então, constrói o segundo argumento, que é o do sonho. Há uma possibilidade, ainda que pequena, que eu esteja, neste momento em que escrevo, dormindo e tudo não passa de ilusões produzidas em meus sonhos. A idéia deste argumento é a de que tudo poderia ser uma ilusão produzida por mim mesmo em meu sonho e que devo suspender os meus juízos sobre a verdade acerca de todas as coisas que percebo. O que valida este argumento é o fato de nós já termos nos enganado no sonho algumas vezes, o que pode levar a crer que neste momento estejamos sonhando e, portanto, sendo enganado.

O argumento do sonho tem a função de estender e radicalizar a dúvida e de levar, portanto, a uma impossibilidade nas afirmações que realizamos sobre os dados sensíveis. A experiência sensível pode ser uma ilusão produzida em meus sonhos.

No entanto, quer esteja sonhando, quer esteja acordado, algumas verdades parecem que não são afetadas por estes argumentos, por exemplo: as quantidades, as formas etc. E, sobretudo, as verdades matemáticas (que o quadrado tenha quatro lados e que dois mais três seja cinco etc.). Portanto, neste percurso a razão está sendo guiada ou educada por procedimentos que não erram, atingindo a verdade.

Dentro dessa argumentação, será elaborado o terceiro argumento que estende e radicaliza a dúvida, o argumento do Deus Enganador3. A idéia fundamental deste argumento é a de atribuir minha origem a um Deus (como dirá Descartes mais à frente na meditação: quanto mais imperfeito for aquele que me produziu mais imperfeito serei) e argumentar que eu posso ter sido produzido de uma tal forma que me engane sobre tudo o que penso.

Ao final da 1ª Meditação, o que temos é a dúvida tornando-se generalizada e radical. Como diz Descartes no começo da 2ª Meditação:
A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas, que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e, como se de súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para me manter à tona4

Este comentário de Descartes dá a medida da dúvida empreendida pelo autor e o propósito seguinte é continuar nesse caminho até que tenha encontrado um ponto que fosse fixo e seguro.

A partir daí temos o argumento que conduz à conquista da primeira verdade, que inaugurará a cadeia de razões, levando ao conhecimento verdadeiro. Neste ato de duvidar, será que duvidei da própria existência?

Não, a minha existência estava assegurada no ato do pensar. Eu sou, eu existo como coisa que pensa (res cogitans).

Diz Descartes:

De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito5.

Eu tenho a certeza de que sou uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa?"É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente" (DESCARTES, René. 1987, 27).

É sobre este ponto fixo (que é o pensamento6), que Descartes solidificará a questão do conhecimento.7

O conhecimento das coisas é elaborado pelo pensamento e a experiência não fornece senão dados mutáveis e aparentes.

Para discutir a questão do conhecimento do mundo físico, Descartes fala não: 

"...dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular. Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de tirado da colméia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste7.

O que temos, nesta argumentação de Descartes, é a descrição daquilo que os sentidos nos dão a conhecer dos objetos, isto é, o que a experiência fornece das coisas. O que temos é a doçura, o odor das flores, a cor, a figura etc.

No entanto, a argumentação de Descartes prossegue para a questão da modificação ou transformação do pedaço de cera e a conseqüente conclusão que somente a razão ou o pensamento é capaz de conhecer o que são as coisas materiais.

Diz Descartes (1987, p. 28):

Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após a modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece8.

O pedaço de cera, assim como todo o mundo material, é suscetível de transformações ou modificações. O que permanece é algo de extenso, flexível e mutável, que é apreendido pela razão.

O que temos como tese fundamental do pensamento cartesiano é que o conhecimento das coisas materiais é uma elaboração do sujeito (pensamento, entendimento ou razão).

Diz Descartes:

Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta9.

Portanto, a transformação ou modificação espacial dos corpos significa uma passagem de um estado A para um estado B e a permanência daquilo que podemos caracterizar como substancial. Percebemos pelos sentidos esta transformação, no entanto, esse ato de perceber é coordenado e organizado pelo sujeito (razão). Somente a razão apreende o elemento substancial das coisas.

Segundo Descartes, os sentidos só nos informam a mudança de estado, a forma etc., cabendo, se e somente se, à razão perceber a transformação.7

É o entendimento ou razão que concebe as transformações espaciais dos objetos, aprendendo a verdade.

Estabelece-se a partir daí um desprezo da experiência na formação do conhecimento sobre o mundo físico. Cabe tão somente à razão conhecer as coisas ou os objetos. A experiência nada organiza, nada representa, nada conhece.

Portanto, a experiência em si mesma, nada representa como fonte de conhecimento, visto que é a razão através de suas elaborações e representações que formata e organiza o mundo dos objetos10.

Mas para atingir tal sucesso, é necessário que a razão esteja educada para realizar tal tarefa afim de dar conta de tudo aquilo que cerca a vida, incluindo o conhecimento sobre o mundo físico:

"O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir". In: Discurso do Método.São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987.

Portanto, a garantia do conhecimento verdadeiro e o atingir de todas as verdades, teria como garantia única a razão sendo guiada (ou educada) por um método infalível, garantindo também o sentido da existência.

É uma Educação da razão!

                                

Referências:

ARRUDA,ACJZA. A importância da experiência na construção da noção espacial segundo a Epistemologia Genética de Piaget. Capítulo I. Dissertação de Mestrado.UNESP. Bauru, 2004;

BRÉHIER, É. História da Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1977;

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia.  São Paulo: Ática, 1997,p.231-235;

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987;

REALE, G. História da Filosofia. São Paulo: Paulus. 199;

1 René Descartes (1596-1650) é considerado o fundador do pensamento moderno;

2 Clareza e distinção para Descartes são os critérios para se atingir a verdade, não restando a menor dúvida;

3 Deus Enganador e Gênio Maligno possuem a mesma função, porém, o gênio maligno possui uma função psicológica, isto é, o engano acontece por que ele produz as ilusões no exato momento em que penso e a falsa impressão de que são verdadeiras.;

4 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987, 23;

5 Idem, 24;

6 Pensamento, entendimento, espírito e razão são utilizados como sinônimos;

7 DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural/Nova Cultural. Coleção Os Pensadores, 1987, 28;

8 Idem;

9 Idem, 29; e

10 Descartes buscou construir uma física geométrica, isto é, elaborar  uma  físico-matemática capaz de conhecer as propriedades do mundo físico.

 *ANTONIO CARLOS JESUS ZANNI DE ARRUDA

























-Graduação em Pedagogia pela Universidade do Sagrado Coração (2017);

- Graduação em Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração (1996);

- Mestrado em Educação para a Ciência pela UNESP (2004);

-Doutorado em Educação para a Ciência pela UNESP (2009); e

- Pós doutorado em Educação pela UNESP (2020);


-Trabalha no Ensino Superior nas mais variadas disciplinas, como filosofia, ética e responsabilidade social, antropologia, metodologia científica e filosofia da educação) ;

Contatos:

e-mail: arrudafilosofia@hotmail.com

linkedin: Carlos Arruda

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