Autor: Fábio Dias Rezende(*)
1.INTRODUÇÃO
Um conde romeno perverso - não no sentido psicanalítico do termo -, que vivia na Transilvânia durante a Idade Média, se viu compelido por uma força externa (o Império Otomano) a enfrentar uma guerra que, ao mesmo tempo em que não procurara, também não agiu para impedí-la. O preço, é claro, era alto demais: ter que entregar mais e mais crianças que estavam sob seu governo para serem integradas ao exército inimigo, como prova de sujeição ao avanço mulçumano. Mito e realidade se misturam e o conto ganha contornos que adotam recortes recebidos de diversas culturas ao longo do tempo. Busco tratar da narrativa mais corrente, central e reconhecida e, para tanto, apoio a maior parte do trabalho sobre a obra clássica de Bram Stoker, publicada em 1897.
O conde, que se vê encurralado, precisa se lançar ao mistério de vender sua alma a um ser misterioso e sombrio para vencer a guerra; este homem que se torna meio-vivo-meio-morto, que controla criaturas consideradas inferiores - em geral temidas e desprezadas -, como lobos, ratos e morcegos, teria, em sua figura "metadescritiva", pontos de contato com Édipo, de Sófocles, e o complexo homônimo formulado por Freud?
Assim como Sófocles sintetiza um pensamento que ocorria em seus tempos, a obra de Bram Stoker dá nome e formato a um mito que o precede: o dos vampiros. Foi publicada, talvez não por acaso, quando a psicanálise estava em gestação e começava a esboçar seu nascimento. Se Freud leu detidamente ou não a obra talvez seja impossível afirmar, mas não se pode desprezar seu apreço pelos clássicos. Neste sentido, a publicação do escritor irlandês, de alguma forma, já nasce clássica e é consolidada nesta qualidade na literatura universal com o passar dos anos.
Será que Freud se dedicaria a tergiversar sobre a obra anos depois de seu sucesso de críticas, de sua adaptação para o teatro, cinema, para seus desdobramentos em outros livros, filmes, novelas e séries televisivas? Considerando as aptidões do pai da psicanálise, dificilmente haverá dubiedade na resposta a essa questão.
2. ÉDIPO, DE SÓFOCLES À FREUD
"Ai de mim! Receio que tenha proferido uma tremenda maldição contra mim mesmo sem o saber!"+ (Édipo, em Rei Édipo).
No complexo de Édipo, a criança se vê às voltas com a angústia de castração diante do reconhecimento de um terceiro, geralmente o pai, que lhe rouba o afeto materno e, por consequência, o sentimento de completude. Este outro instaura a falta, que já habitava a criança, mas que, doravante, se apresentará como constitutiva do sujeito. Édipo, vale lembrar, tinha sobre si a profecia de que mataria seu pai, Laio, e tomaria sua mãe, Jocasta, como mulher ao tornar-se rei. Ele, como sabemos, não conhecia o vaticínio pela via da intelecção. Entretanto, este terceiro ameaçador é encontrado e morto, o que configura a primeira ruptura a uma interdição fundamental da civilização: o parricídio. Todavia, a essa altura, Laio era um desconhecido para o filho, um estranho ameaçador em seu caminho. Édipo, então, volta à cidade de Cadmo, em Tebas, de onde foi enviado embora por seu pai quando nascera, pois ele temia a profecia e buscava evitar seu cumprimento. Ao chegar, Édipo desvenda o mistério da Esfinge, casando-se com sua mãe e cometendo a segunda transgressão fundamental da civilização: o incesto. A Esfinge era um monstro alado, com corpo de leão e mulher, que oprimia a cidade, e que detinha a resposta para um enigma: Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três. Édipo, então, responde que trata-se do homem que, ao nascer, engatinha; em seguida passa a andar sobre duas pernas e, na velhice, utiliza uma bengala. Freud, em sua Conferência XXI, sobre o desenvolvimento da libido e as organizações sexuais, discorre:
"A essa escolha que a criança faz, ao tornar sua mãe o primeiro objeto de seu amor, vincula-se tudo aquilo que, sob o nome de ‘complexo de Édipo’, veio a ter tanta importância na explicação psicanalítica das neuroses e tem tido uma parte não menor, talvez, na resistência à psicanálise." (Freud, em Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (Parte III) (1915-1916) Ed. Standard Brasileira. Imago. P. 60.
3. O VAMPIRO DE BRAM STOKER E TANTOS OUTROS
Após o pacto feito com uma criatura amaldiçoada, o conde Vlad estranha seus novos poderes e passa por uma espécie de novo nascimento, agora assumindo duas naturezas, a saber, uma física e outra metafísica. A imortalidade passa a ser o aspecto central de sua existência, mas não sem um alto sofrimento por isso. A solidão, a impossibilidade de estabelecer vínculos, a perda de seus entes queridos; tudo isso configura uma situação de isolamento que faz da personagem, simultaneamente, um modelo de ser e de não-ser. Drácula não vê sua imagem refletida em espelhos, falta-lhe, desta forma, uma mínima condição de reconhecimento de si. A nova criatura é híbrida e carrega a ambivalência de um coração humano - no sentido anatômico e figurado, dado seu amor por Mina. e de uma natureza sobre-humana, com a força de dezenas de homens e a capacidade de assumir outras formas.
Drácula detém outra ambivalência: ser poderoso e, ao mesmo tempo, sensível à elementos inócuos aos seres humanos, tais como a luz do sol e dentes de alho. Não é, por assim dizer, uma existência plena, mas contingencial e claudicante. O vampiro definha se não sugar sangue, dorme em caixões cheios de terra como alguém que anseia por estar ligado ao que há de orgânico e proliferado pelo mundo como sendo sua forma de incubar suas potências que nascem, não à base de luz solar, mas a partir da umidade e da escuridão do isolamento. Os homens o temem, ele os fere; as mulheres o devotam e ele lhes dá o elixir da vida eterna, em seus termos. Lucy é uma notável vítima - ou beneficiária de suas artimanhas. A criatura é uma espécie de porta-voz das trevas, havendo, inclusive uma analogia com a figura histórica de Jesus, em sua dimensão mítica e mística: seu sangue também concede vida eterna, nem tão viva, nem tão eterna, mas um símile das dádivas, no entanto sombrias e mórbidas, como o negativo do Filho de Deus, sendo ele, Drácula, frequentemente associado ao filho do diabo. A criatura, portanto, assombra e cativa, seduz e apavora, ama e odeia, dá vida, tirando-a.
4. DRÁCULA E A ESFINGE
Drácula tem para si, como terceiro ameaçador, não o pai, como Édipo, mas o Império Otomano, que ameaçava invadir sua região e, como objeto de amor, à semelhança da mãe de Édipo, a sua amada Mina, como representante-mor de seu povo, e defendê-la torna-se prioridade. A amada é morta durante a guerra e a missão da criatura, agora soturna e poderosa, mas absolutamente solitária, é reencontrar sua amada nos "oceanos do tempo". O enigma não vem da Esfinge, mas do pacto com a criatura das trevas que lhe confere imortalidade. O preço da criança que, simbolicamente, mata o pai para ficar com a mãe é ingressar em um período de certo adormecimento de suas potências sexuais, a saber, um período de latência, como assinalou Freud (1915-1916).
O preço que o Conde paga, no entanto, é o de um adormecimento de outra ordem, de sua dimensão natural, humana - assim como a sexualidade, que é constitutiva do ser humano - e ser imortal, dependente de sangue e solitário é o destino existencial que ele abraça, compulsoriamente. O conde, se encarado como um garoto em sua jornada edípica, faz o movimento de reivindicar a condição anterior de gozo, sem abrir mão de sua onipotência capaz de refrear um outro que lhe afronta. A morte é o pai a ser superado, o pai que, por assim dizer, é silenciado de alguma maneira, mas não plenamente. O pai morto em fantasia segue vivo na concreção da realidade e ainda investe contra as aspirações da criança; a imortalidade do vampiro também não é absoluta, já que depende de sangue humano e não pode ser golpeado por uma estaca no coração. O coração do conde é uma analogia com a angústia da criança, é seu ponto sensível de ruptura. A estaca é o falo do pai, o poder deste que pode lhe castrar a qualquer momento. Reaver Mina é a tarefa impossível de tornar-se novamente um só com a mãe em tempos primitivos. Em alguma medida, Drácula até alcança este objetivo, mas, por tratar-se de uma impossibilidade, o resultado é incipiente e a criatura deve contentar-se com outra mulher, em outra era, a quem ele confere a personificação de sua amada morta no passado. Drácula, assim como a criança no complexo de Édipo, recorre ao expediente da fantasia para satisfazer seu desejo e para tentar contornar, a seu modo, a castração com a perda do objeto amado e com a perda de sua humanidade intrínseca.
5. CONCLUSÃO
Longe da pretensão de fechar o assunto, mas evitando também a abstenção de concluir, é possível depreender que é possível fazer analogias entre as narrativas de Sófocles e Bram Stoker com as formulações teóricas de Sigmund Freud a respeito do complexo de Édipo. O que Freud explicou, para este caso, pode ser utilizado como uma incursão que desconfigura o caráter ao mesmo tempo concreto e místico da história vampiresca e institua outro registro, a saber, o da fantasia, que ofereça uma abertura interpretativa sob o prisma da psicanálise. Drácula precisou se haver com a falta e deu seu jeito, a seu modo, para seguir se afirmando enquanto sujeito desejante. A criança, em sua dimensão edípica, também precisa encontrar sua saída e sua maneira de resolver esse conflito. Essa é a trama de um desafio particular e sem grandes receitas. Drácula é a criança que faz sua própria resolução edípica e se encontra com os erros e acertos que esse processo lhe trouxe.
Para além do complexo de Édipo, o mito de Drácula pode ser compreendido como uma ilustração das aspirações humanas de poder e imortalidade. Aspirações estas que estão, grosso modo, no firmamento da produção e da reprodução como tentativas de eternização do sujeito.
Afora o revestimento místico, transcorporal e metafísico da narrativa vampiresca, a história do Conde da Transilvânia aponta para movimentos humanos que nada têm de fenômenos isolados. O que se suga talvez não seja o sangue pelo sangue. O que se vende talvez não seja a alma ao diabo e o que se ganha, talvez, sim, seja uma forma de vida que, a depender da intensidade, se eterniza nas narrativas ao longo dos séculos. Neste sentido, Drácula, assim como Édipo, é inquestionavelmente bem-sucedido. Em que pese o fato de ambos serem cativos de seus destinos, escravizados pelas profecias que lhes atravessam e contra as quais relutam, ambos se posicionam no centro da condição neurótica, na medida em que, embora, em alguma medida, conheçam o que inevitavelmente lhes espera, atuam para construírem outro destino e proclamarem liberdade.
REFERÊNCIAS
1. SÓFOCLES. Rei Édipo, eBooksBrasil.com, 2005. Tradução J. B. de Mello e Souza;
2. FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, ed. Imago, 1996 (Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Parte III, 19151916);
3. STOKER, Bram. Drácula. eBooksBrasil, 2002. Fonte Digital Thiago Maia;
4. DRÁCULA, de Bram Stoker. Direção: Francis Ford Coppola. Intérpretes: Gary Oldman, Anthony Hopkins, Winona Ryder, Keanu Reeves e outros;
Roteiro: James V. Hart. Columbia Pictures, 1992; e
5. DRÁCULA, A História Nunca Contada. Direção: Gary Shore. Intérpretes: Luke Evans, Sarah Gadon, Dominic Cooper e outros. Roteiro: Matt Sazama e Burk Sharpless. Legendary Pictures e Michael De Luca Productions, 2014.
*FÁBIO DIAS REZENDE
-Graduado em Psicologia pela Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2017);
- Pós-Graduado em Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma pelo Instituto Sedes Sapientiae (2019) ;
Atendimento psicológico em Consultório Particular
Orientação psicanalítica
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