terça-feira, 28 de maio de 2024

A prescrição intercorrente face as alterações da Lei nº 14.195/2021


 Autor : Renan Santana Mello(*)

O presente texto versa a respeito dos efeitos da novel disposição dos parágrafos 4° e 5°, do art. 921, do CPC, trazida pela Lei 14.195/21, os quais alteraram o termo inicial de contagem da prescrição intercorrente.

Todo direito material possui um prazo prescricional correlato que, por força dos arts. 240, §1º, do CPC e 202, I, do CC/2002 é interrompido através do despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordena a citação da parte ré.

Segundo Clóvis Beviláqua, citado por Washinton de Barros Monteiro (1988) em sua obra, a prescrição pode ser entendida como "a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não-uso dela, durante determinado espaço de tempo".

Em que pese o fato de a contagem deste prazo ser interrompida através da determinação da citação no processo judicial, o legislador entendeu necessário fixar a hipótese de perda desse direito dentro do processo, evitando a perpetuação ad eternum das obrigações não satisfeitas, de modo a garantir, também, uma maior segurança jurídica e atender ao princípio da duração razoável do processo, insculpido no art. 5º, LXXVIII, da CF/88. Tal modalidade de prescrição foi chamada de prescrição intercorrente.

A prescrição intercorrente pode ser contada nos processos de execução e nos cumprimentos de sentença, ou seja, em procedimentos onde o direito é certo, líquido e exigível. Não se aplica, portanto, a processos de conhecimento.

O CPC/73 não trazia expressamente o termo inicial que deveria ser utilizado para início da contagem do prazo de prescrição intercorrente, razão pela qual o STJ, no julgamento do Incidente de Assunção de Competência nº 1, de uma interpretação extraída do artigo 202, parágrafo único, do CC/02, fixou a seguinte tese:

"1.1. Incide a prescrição intercorrente, nas causas regidas pelo CPC/73, quando o exequente permanece inerte por prazo superior ao de prescrição do direito material vindicado, conforme interpretação extraída do art. 202, parágrafo único, do Código Civil de 2002."
Ou seja, percebe-se que, até 2015, quando entrou em vigor o novo CPC, a prescrição intercorrente possuía previsão normativa apenas no Código Civil e seu termo inicial estava atrelado à inércia da parte exequente em impulsionar o feito, não havendo que se falar em inércia quando a paralisação processual se dava por culpa do próprio judiciário, tal qual já salientou a quarta turma do STJ no julgamento do AgInt no REsp 1795880/SP.

Com a vigência do CPC de 2015, houve uma singela mudança no instituto, pois, consoante leitura do artigo 921, III c/c §§1º e 4º, passou a ser expressa a determinação de que o processo seria suspenso pelo prazo de 1 ano, caso o Executado não possuísse bens penhoráveis e, transcorrido tal prazo sem manifestação da parte Exequente, iniciaria a contagem do prazo de prescrição intercorrente.

Pela atual sistemática, trazida pela lei nº14.195/2021, o termo inicial da prescrição intercorrente é o dia em que o exequente teve ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. Vale ressaltar, contudo, que, durante o prazo de 1 ano, esse prazo da prescrição intercorrente – que já começou – fica suspenso, permanecendo vigente tal previsão de suspensão.

Ocorre que, diante da aplicação imediata da lei processual, surge, a priori, uma dúvida a respeito das implicações trazidas pelo regramento vigente a partir de 2021. Será que sua vigência justifica teses de ocorrência de prescrição intercorrente em períodos anteriores à vigência da referida norma?

É certo que a norma processual possui aplicabilidade imediata aos processos em curso, o que se extrai da leitura do art. 14, do CPC. Contudo tal artigo também menciona que a norma processual não retroagirá.

Tal determinação visa resguardar o princípio do tempus regit actum, segundo o qual as situações jurídicas devem, por via de regra, obedecer às leis vigentes à época dos fatos, conforme previsto no art. 6º, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[1], assim como o princípio da segurança jurídica.

Portanto, inaplicável norma redigida apenas em 2021, de forma retroativa, a situação jurídica anterior, para alterar conclusões e gerar efeitos novos.

Sobre o assunto, através de entendimento pioneiro, o TJSP corrobora com a tese de inaplicabilidade das modificações trazidas pela Lei 14.195/2021, de modo retroativo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DECISÃO QUE REJEITOU O RECONHECIMENTO DE PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. PEDIDO DE DESARQUIVAMENTO ANTES DO DECURSO DO PRAZO QUINQUENAL. INEXISTÊNCIA DE DESÍDIA DO AGRAVADO. INAPLICÁVEL O ART. 921, § 4º, DO CPC, COM AS MODIFICAÇÕES DA LEI 14.195/2021, DE FORMA RETROATIVA. TEMPUS REGIT ACTUM. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE NÃO CONFIGURADA. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO IMPROVIDO. (grifos nossos)

(TJSP; Agravo de Instrumento 2095746-89.2022.8.26.0000; Relator (a): César Zalaf; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro de Mogi das Cruzes - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2022; Data de Registro: 13/07/2022)
AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – duplicata – sentença que declarou a prescrição intercorrente – inocorrência – ausência de paralisação dos autos por prazo superior à prescrição do direito material, que é de três anos – fundamentação na sentença que utilizou o art. 921, § 4º, do CPC com redação alterada em agosto de 2021, que modificou substancialmente o entendimento antes consolidado acerca do termo inicial da prescrição - descabida a aplicação do referido dispositivo de forma retroativa – exequente que foi diligente o tempo todo de tramitação - execução que deve prosseguir, inclusive porque foi instaurado incidente de desconsideração da personalidade jurídica - precedente – sentença reformada – recurso provido. (grifos nossos)
(TJSP; Apelação Cível 0009012-66.2014.8.26.0319; Relator (a): Achile Alesina; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de Lençóis Paulista - 3ª Vara Cumulativa; Data do Julgamento: 06/06/2022; Data de Registro: 06/06/2022)

Assim, as frustrações na localização de bens ou do devedor, ocorridas antes vigência do CPC de 2015 e das alterações trazidas pela lei 14.195/21, não são capazes de dar início a contagem do prazo de prescrição intercorrente.
Deve-se, portanto, respeitar o entendimento do STJ, no que diz respeito ao regramento na época de vigência do CPC de 1973, aplicando-se as mudanças posteriores apenas às situações consolidadas após a vigência das novas normas.7

A partir de 2015, com a mudança trazida pelo CPC de 2015, o termo inicial passou a ser a comprovada ausência de bens penhoráveis do executado, razão pela qual também deve-se respeitar, no período de vigência da referida norma, seu termo inicial.

Contudo, a partir da vigência da Lei n§14.195/2021, inaugurou-se uma nova forma de contagem do prazo prescricional que, somente em situações processuais ocorridas a partir da sua vigência, poderá ser contado após a ciência da primeira tentativa frustrada de localização de bens ou do devedor, mais uma vez, respeitando-se o prazo de suspensão processual de um ano.

Referências


BRASIL. Lei nº 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.

BRASIL. Lei nº 13.105, 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.

MONTEIRO, Washinton de Barros. “Curso de direito civil, parte geral”. 27ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988, p. 286/287.


[1] Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

(...)

*RENAN SANTANA MELLO

















- Graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2020);

-Mestrando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas


Nota do Editor:

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