terça-feira, 13 de agosto de 2024

Dois Gigantes do Estado de Direito


 Autor: Rodolfo Costa Manso Real Amadeo (*)

Aproveitando as festividades jurídicas de agosto, aproveito para relembrar dois Professores Eméritos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Goffredo da Silva Telles Jr. e José Ignacio Botelho de Mesquita, que nos deixaram há 15 e 10 anos, respectivamente, e que foram os dois primeiros signatários da famosa "!Carta aos Brasileiros", de agosto de 1977, defendendo o retorno do Estado de Direito ao Brasil.

O Professor Goffredo lecionou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco de 1940 a 1985, quando se aposentou compulsoriamente ao completar 70 anos. Suas aulas se concentravam, principalmente, na disciplina Introdução à Ciência do Direito, ministrada no primeiro ano do curso.

Tendo ingressado na Faculdade em 1994, infelizmente, não tive o privilégio de ser aluno do Professor Goffredo, mas, estive com ele várias vezes durante minha graduação. Para minha sorte, meu avô, Nelson Real Amadeo, era advogado do Professor Goffredo e eu, que com ele estagiei desde o primeiro ano, sempre me voluntariava a entregar algum documento ou colher a assinatura do Professor, ocasiões em que era agraciado com suas histórias da Faculdade, desde seus tempos de aluno em 1933/1937, período em que presenciou a reforma do prédio histórico, até sua aposentadoria compulsória.

Mais recentemente, seguindo os passos de meu avô, tive o privilégio de advogar para a viúva e a filha do Professor Goffredo, Maria Eugenia Raposo da Silva Telles e Olivia Raposo da Silva Telles, podendo relembrar com elas as histórias do Professor Emérito.

Na falta de memórias próprias sobre seu período de docência, evoco aqui as lembranças de dois de seus ilustres alunos, José Carlos Dias e Walter Piva Rodrigues:

"Tínhamos um poeta a nos dar aula de Direito, mais do que um jurista atado a fórmulas bacharelescas, escandindo pausadamente as frases com rigor métrico, esgotando-lhes o sentido, constante preocupação com a sintonia fina do raciocínio. (...) Uma das aulas, talvez a mais linda, era presenciada por um número grande de estudantes para ouvir Goffredo ensinar onde estão as raízes do Direito: ‘o Direito é como o amor, nasce do coração dos homens’. (...) Convidado a escrever sobre Goffredo, pus-me a pensar muito e me desafiei a pensar sobre o filósofo, o pensador, o intelectual, o político na acepção de quem interfere no instante histórico de seu país com sua denúncia ou com seu apoio, o orador brilhante desde a mocidade, esse jovem bem nascido e bem crescido que não envelhece, sobre este ser humano predestinado à paixão. E por falar em paixão, a nossa geração acadêmica, sem dúvida, pulsa em especial no seu coração. É que a paixão de Goffredo se materializou em Maria Eugenia, bonita e brilhante, querida caloura da turma de 64. Como acontece com os grandes mestres, Goffredo acompanhou seus discípulos, encorajando-os, dando-lhes conselhos, ouvindo-os, torcendo por eles, sempre uma palavra amiga." (José Carlos Dias, In https://goffredotellesjr.com.br/goffredo-e-suas-licoes-de-amor-jose-carlos-dias/, acesso em 05.08.2024)

"O aluno mais antigo e o mais moderno da Velha Academia sempre terão cada qual o seu depoimento muito próprio sobre a inesquecível e produtiva vivência acadêmica e sobre a semeadora e edificante militância de Mestre Goffredo pelo predomínio da Lei, do Direito e da Justiça. (...) Como se sabe, Mestre Goffredo protagonizou um dos pontos altos da retomada da Liberdade e da Democracia no nosso País ao redigir e ao ler a ‘Carta aos Brasileiros’ (1977) (...) Quero, todavia, relembrar a redação pelo Professor Goffredo da sua ‘Carta aos Brasileiros, ao Presidente da República e ao Congresso Nacional’, em outro momento histórico do Brasil, quando se opôs em nome de centenas de entidades da mais alta representatividade (...) à ilegítima Emenda n.º 26/85, proposta pelo Presidente da República. Mestre Goffredo não só denunciava a ilegitimidade da Emenda do Presidente Sarney, mas, ainda, conclamava por uma Assembleia Constituinte, Livre, Autônoma e Soberana, desvinculada do Congresso Nacional. (...) Em Brasília, Mestre Goffredo, na companhia inseparável de Maria Eugenia, Francisco Whitaker (...), Marco Antonio Barbosa, Samuel Figueiredo, Margarida Genevois, Silvia Whitaker e tantos outros representantes de entidades de estudantes e da sociedade civil, fomos ao Congresso e lá, prontamente, recebidos pelo Presidente Ulisses Guimarães (...). As gerações novas – do presente e do futuro – devem ser lembradas do exemplar comportamento do nosso ‘Professor Símbolo’, para que o melhor da tradição das Arcadas justifique o seu culto, transformando-se em fonte permanente do longo e penoso processo de construção da cidadania em nosso país." (Walter Piva Rodrigues, Mestre Goffredo: um farol para as gerações (do passado, do presente e do futuro) da Velha e sempre Nova Academia, In Revista do Advogado, n.º 67, ago/2002, pp. 42/44)

Já o Professor Mesquita lecionou diversas disciplinas de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco de 1964 a 2005, quando se aposentou, compulsoriamente, aos 70 anos. Tive a honra e a felicidade de ser aluno do Professor Mesquita nos meus três últimos anos da graduação (1996/1998), tendo ainda sido seu orientando no mestrado e integrante de seu grupo de estudos de Processo Civil. Foi um professor amado por seus alunos, pois nele reconhecíamos um mestre rigoroso, mas, ao mesmo tempo, muito próximo da turma, extremamente dedicado à preparação das aulas e preocupado em despertar em nós o espírito crítico.

Sua forma de lecionar pode ser vislumbrada nos discursos proferidos quando da outorga de seu título de Professor Emérito, proferidos pelo Professor Tercio Sampaio Ferraz e pelo próprio Professor Mesquita:

"No ato de lecionar, a formação do aluno não pode ser apenas uma consequência automática da transmissão de informações, mesmo com a finalidade de ensinar algo. Essa característica deixa transparecer o modo pelo qual o mestre José Ignacio lecionou e formou, formou e lecionou. (...) o verdadeiro mestre que exerce o seu ofício de ensinar, ainda que minimamente, exercita aquela capacidade de avaliar com convicção: despertar no aluno o senso crítico. E nisso sempre esteve a pedra angular de sua docência. (...) seu processo de ensinar não era um diálogo do eu consigo mesmo, mas demandava, mesmo quando estava inteiramente só a transmitir informações, esse estar em comunicação com seus alunos, com quem, sabia o nosso professor emérito, deveria chegar afinal a alguma comunhão. (...) Um verdadeiro mestre, José Ignacio, mesmo no momento de sua convicção, não sendo um ensimesmado, sempre se pôs no mundo comum da sala de aula, ao qual não negava a exuberância da inteligência e da personalidade daqueles autores que discutia. Tinha, pois, o senso crítico do acerto e do erro, ao que aliava essa rara capacidade de reconhecer e proclamar o mérito alheio (tão forte no respeito pela juventude), com antecedência aos ensinamentos que transmitia. Exatamente por isso, como professor, o mestre sempre soube que as opiniões e questões dos alunos, por mais obtusas (desarrazoadamente inúteis) que parecessem, mereciam respeito e atenção." (Saudação do Professor Tercio Sampaio Ferraz, In José Rogério Cruz e Tucci, Walter Piva Rodrigues e Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo (coords.), Processo Civil: Homenagem a José Ignacio Botelho de Mesquita, São Paulo: Quartier Latin, 2013, pp. 18/22)

"O poder dos alunos empurrou-me, de diversas formas, no rumo da paixão pelo direito, pelo ensino do direito e por esta Faculdade, por esta sagrada e consagrada Faculdade. É um poder que se manifesta na sala de aula e estabelece uma relação com o professor, um vínculo, um vínculo tão consistente que poderia dizer, quase que material, tangível, perceptível como as marés, às vezes montantes, às vezes vazantes. Permito-me essa metáfora porque ela exprime exatamente o que eu sentia em classe: as variações de distância, maior ou menor, entre os alunos e o professor, consoante a qualidade da aula. Dias em que, por alguma razão, a aula não saía a contento, o espaço entre a mesa do professor e a primeira fileira de alunos aumentava, os alunos ficavam distantes. Ao contrário, nos dias em que a aula agradava, esse mesmo espaço diminuía, como se me fosse possível, estendendo as mãos, cerrar nas minhas as dos meus alunos. Quem, tendo a felicidade de sentir esse poder dos alunos, não se atiraria de corpo e alma na busca da aula perfeita?" (Agradecimento do Prof. José Ignacio Botelho de Mesquita pelo título de Professor Emérito, In José Rogério Cruz e Tucci, Walter Piva Rodrigues e Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo (coords.), Processo Civil: Homenagem a José Ignacio Botelho de Mesquita, São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 25)

Quero terminar com uma lição sobre as características do Estado de Direito, extraída da própria "Carta aos Brasileiros", assinada por esses dois Professores Eméritos e por outros tantos brasileiros e brasileiras que lutaram pela redemocratização do país:

"O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica. É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites de sua competência. É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das pessoas. E é aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita."


*RODOLFO COSTA MANSO REAL AMADEO 

 














-Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo - USP (1998); 

-Pós-graduação em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo -USP (2002);

-Mestrado em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo - USP (2005) e 

-Doutorado em Direito Processual Civil  pela Universidade de São Paulo -USP (2010);

- Professor de Direito Processual Civil e  Meios Adequados de Resolução de Disputas em cursos  de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas;

- Integrante do Grupo de Estudos Avançados em Arbitragem da Fundação Arcadas (GEAARB) e do Núcleo de Acesso à Justiça, Processo Civil e Meios de Solução de Conflitos da Fundação Getulio Vargas (NAJUPMESC); e

Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAR), do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO), do Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia (IBDE), da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE).

Nota do Editor:

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2 comentários:

  1. Bela homenagem a esses dois gigantes do ensino di Direito, dos quais tive o grande privilegio de ser aluno.

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  2. Muito obrigado, Batuira. Eram, realmente, professores extraordinários!

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