quinta-feira, 2 de maio de 2019

A Guarda dos Animais de Estimação no Direito de Família

Autora: Mariana Costa(*)


O debate sobre o conceito de família, ainda hoje, é acalorado e levanta inúmeras questões sociais e jurídicas. Diante dessa e de outras realidades, o Direito não é estagnado, ao contrário, precisa ser "vivo"[1] e acompanhar os fenômenos sociais. 

Sendo assim, faz sentido que entrem em pauta as disputas pela guarda dos animais de estimação. Há algum tempo o Direito de Família vem evoluindo para compreender as relações familiares pelo viés do afeto, dos laços familiares além da consanguinidade e da afinidade, além dos famosos "graus de parentesco". 

Muitas pessoas enxergam seus animais de estimação, sobretudo cães e gatos, como parte da família, alguns chegam ser tratados como verdadeiros filhos de um casal, com todos os mimos e cuidados dispensados por seus “pais” humanos. 

Esse afeto pelo animal de estimação tem chegado aos tribunais brasileiros com maior frequência do que se imagina. Em 2018, destacaram-se decisões sobre o assunto, uma delas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[2], reconhecendo a competência da Vara de Família para processar e julgar uma ação judicial em que se pleiteou a "posse compartilhada e regime de visitas" do cão de estimação de um casal. 

Deparando-se com a ausência de legislação sobre o tema, o Tribunal optou por basear-se em decisão anteriormente exarada pelo próprio TJSP, no sentido de que, embora no Código Civil de 2002 fossem os animais considerados como "coisa", "a lei não prevê como resolver conflitos entre pessoas em relação a um animal adquirido com a função de proporcionar afeto, não riqueza patrimonial", e nessa lacuna caberia o tratamento análogo ao dado nos casos de conflitos e disputas pela guarda e visitas de crianças e adolescentes, incumbindo assim à Vara de Família dirimir a questão da posse e das visitas relativas ao animal de estimação. 

Também em 2018, foi amplamente divulgada decisão[3] do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto. No julgado, o STJ entendeu pela não equiparação entre animais de estimação e seres humanos e reconheceu a importância da discussão envolvendo a entidade familiar e o animal de estimação, vide: 
"Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII - "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade"). REsp nº. 1.713.167 – SP (trecho da ementa)." 
A Corte ateve-se ao Código Civil que tipifica o animal como coisa, ausente de personalidade jurídica e continuou sem dotar o animal de estimação do status de sujeito de direitos, sendo assim impossível a analogia com o exercício do poder familiar que decorre das relações entre pais e filhos. No entanto, foi na dignidade da pessoa humana que a Corte encontrou o fundamento para decidir por conceder ao litigante a visitação do animal adquirido na constância da união estável: 
"5. A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade. 
6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. 
7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. 
8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. 
9. Recurso especial não provido. (REsp nº. 1.713.167 – SP (trecho da ementa). "
É clara a relevância que a relação entre os animais de estimação e seus tutores atingiu na sociedade, circunstância que não poderia ser ignorada pelos julgadores, visto que não se pode tratar o objeto de afeto com a mesma frieza que é tratado um objeto de mera propriedade. O Direito, ao fim e ao cabo, vem para atender as necessidades humanas e regular suas relações e, de maneira especialmente delicada, as relações afetivas e seus rebatimentos jurídicos. 

No Brasil, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística – IBGE[4], país em que existem mais cachorros de estimação que crianças de 0 a 14 anos, é evidente a necessidade de regulamentação e, por esse motivo, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 542/2018, sobre a custódia compartilhada dos animais de estimação nos casos de dissolução do casamento ou da união estável, atualmente em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. 

O Projeto "estabelece o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável. Altera o Código de Processo Civil, para determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação" e, se for aprovado, fará com que no divórcio ou na dissolução da união estável, quando não houver consenso sobre a custódia do animal de estimação em comum, o juiz de família determine o compartilhamento da custódia e das despesas de manutenção do animal de forma equilibrada entre as partes. 

Além disso, o PLS traz conceitos do que vem a ser o animal de propriedade comum (aquele cujo tempo de vida tenha transcorrido majoritariamente na constância do casamento ou da união estável), prevê o tempo de convivência e a forma de divisão de despesas. 

Por enquanto, a decisão proferida pelo STJ, ainda não que tenha repercussão geral, continuará a ser a baliza para decisões judiciais em casos semelhantes, na mesma decisão, o Superior Tribunal de Justiça ressaltou que a discussão depende da análise do caso concreto para se avaliar a existência ou não do direito a visitas concedida no julgamento do Recurso Especial nº . 1.713.167 – SP. 

REFERÊNCIAS
[1] Eugen Ehrlich estudou o fenômeno jurídico compreendido de forma dinâmica. O direito não é estático e sim associado aos fenômenos sociais. Essa forma de pensar adequa-se ao direito de família, abrangendo assim os novos arranjos familiares, embora a legislação nem sempre acompanhe a velocidade dos fenômenos sociais. Para Ehrlich, o direito está além da letra da lei, o direito “vive” nas dinâmicas sociais;
[2] Agravo de Instrumento nº 2052114-52.2018.8.26.0000. Inteiro teor disponível em https://www.conjur.com.br/dl/vara-familia-julga-guarda-compartilhada.pdf ;

*MARIANA COSTA













-Advogada, inscrita na OAB/DF nº 41.871;
-Especialista em Direito Processual Civil
-Atuante nas áreas de Família, Sucessões, Direito da Mulher, Criança e Adolescente, Direito Homoafetivo,e
-Mediadora Familiar.
Nota do Editor:
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