terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Análise de um acórdão prolatado durante a ditadura militar


 


Autora:Scheilla Regina Brevidelli(*)

Durante meu trabalho como higienizadora de Acórdãos históricos da Justiça do Trabalho pude entrar em contato com um material decisório revelador.

O que me encantou nesse trabalho foi a postura do juiz diante do mundo ao seu redor, observando com clareza as diferenças de classes sociais, as desigualdades do país e o poder empresarial, usado, muitas vezes, para criar uma versão dos fatos capaz de trazer à empresa vantagens materiais, além de retirar sua responsabilidade sobre o desenrolar do conflito posto no processo.

Mais do que as argumentações jurídicas, o que ressalta do material colhido em minha pesquisa foi o compromisso social do julgador, inserido na realidade histórica da época.

Meu olhar se volta, pois, à investigação e análise dessa postura, capaz de gerar decisões que conseguem alterar a realidade trazida aos autos, com a clara visão do impacto social da sentença, trazendo um resultado de equanimidade ao conflito.

Trata-se de textos onde o juiz se coloca de uma maneira muito pessoal, fazendo indagações sobre a postura das partes no conflito e que ao final projetam um modelo de sociedade calcado em maior justiça social, menor desigualdade de classes, trazendo como resultado um equilíbrio de forças entre as partes litigantes.

Disso tudo resultam decisões que dialogam com a sociedade, e onde o juiz assume que a sentença ou Acórdão deve ter um caráter educativo sobre o meio social em que atua, desempenhando a função de abrir janelas éticas para o mundo.

São decisões potentes, cheias de pessoalidade e visão crítica da sociedade, inclusive no período da ditadura militar, em que havia censura aberta do Poder Executivo sobre a atividade judicante.

Carolina Nabarro Muhoz Rossi em seu livro O juiz visto por ele mesmo diz: "O juiz pode representar tanto a resistência contra a opressão quanto a própria opressão" (1).

O mito da imparcialidade do juiz é inviável, eis que ele é influenciado pelo ambiente em que vive e por suas experiências. O cerne deste questionamento se refere ao receio de que a pessoalidade afaste a decisão judicial da lei que a embasa.

Mas não é isso o que se mostra nas decisões pesquisadas. Ao contrário, a clara percepção do seu papel político e social torna o juiz muito mais capaz de encontrar uma solução ajustada ao caso concreto, pacificando o anseio das partes em litígio.

Carolina Nabarro assim aduz em seu livro:
A principal característica de alguém que pretenda ser juiz talvez seja a capacidade de se indignar diante da injustiça, e a necessidade de reequilibrar o fiel da balança…Mais do que conhecimentos técnicos, o juiz precisa ter a consciência de que cada decisão envolve interesses humanos, e que em cada processo há a vida de uma pessoa, muitas vezes pausada até sua decisão (2).
Para ilustrar, trago como exemplo o ACÓRDÃO 1134/65, que tem como relator o desembargador Fernando de Oliveira Coutinho:

TEMA REAJUSTE SALARIAL DURANTE A DITADURA MILITAR/ DISSÍDIO COLETIVO DE SANTOS/ SINDICATO DOS TRABALHADORES NA INDÚSTRIA DE DESTILAÇÃO E REFINAÇÃO DE PETRÓLEO DE CUBATÃO X PETROBRÁS:

Alega o suscitante que a suscitada vinha resolvendo os problemas salariais dos servidores através de acordos semestrais. Mas após a vitória do Movimento Revolucionário Nacional que se propôs extirpar do nosso meio as agitações, o clima recíproco de entendimento foi interrompido por força da orientação econômica e financeira que o que o Governo Revolucionário resolveu intervir no problema salarial ligado às suas autarquias, às sociedades de economia mista e outras entidades.

E no desenvolvimento de sua política econômica e financeira partiu o Governo Federal do pressuposto segundo o qual existiam classes de trabalhadores ganhando muito e outras percebendo remuneração não condizente com a sua efetiva cooperação no trabalho de engrandecimento nacional, fato que, no meu entender se incluía entre os fatores de agravamento da espiral inflacionária e do desequilíbrio social reinante.

O sistema discriminatório estabelecido pela política salarial do Governo Federal não terá outra virtude que não a de acarretar o empobrecimento paulatino dos integrantes dessas categorias, tidas e havidas como milionárias como decorrência dos exagerados favores até então concedidos, quando é certo que são apenas titulares de vantagens conquistadas de forma legal. Se existem classes de trabalhadores percebendo salários não condizentes com as suas obrigações funcionais, nada justifica se promova um nivelamento de cima para baixo em detrimento de quem se encontra numa situação melhor, quando o certo e justo seria trazer essas classes tidas como menos aquinhoadas a um nível de vida mais consentâneo com o grau de suas atividades profissionais. Como decorrência surgiu o decreto 54.018 de 1965 e outros que vieram a dar feição do Conselho Nacional de Política Salarial.

As sentenças normativas limitaram-se quase sempre a reajustamento de salário, ou seja, à restauração do poder aquisitivo da moeda, pelo crescimento do custo de vida. Acreditamos mesmo que a solução final será os acordos intersindicais. Mas de momento é patente a imaturidade dos sindicatos obreiros ou mesmo patronais. Mas como consequência dessa imaturidade e influências nefastas à classe, temos como certo que os reajustes deveriam sempre ser decididos pelo Poder Judiciário, competente que se encontrava, encontra e sempre se encontrará livre de injunções de ordem política.

E cremos não exagerar ao afirmar que a categoria suscitante sem estar situada na área denominada milionária ou dos príncipes da República é uma das mais bem dotadas do país, obviamente dentro da classe obreira…tão só demonstrar a disparidade gritante com outras categorias, com o abandono clamoroso e injustificável do nordestino que se vê obrigado a consumir bens de produção oriundos desta terra a preços astronômicos dado a melhor remuneração de nosso operariado ou em consequência do nosso maior poder aquisitivo; do camponês entregue à sua própria sorte protegido por leis ineficazes por falta de aparelhamento apropriado do litorâneo inteiramente olvidado. Assim, se razão assiste aos suscitantes, não pode deixar de ser parcial. E não menos razão assiste à suscitada.

As regras dos decretos 54.018 e 54.228 deste ano, não se aplicam aos empregadores envolvidos neste dissídio. Por isso não nos utilizamos da fórmula por eles preconizada para fixar salários.

A competência desta Justiça do Trabalho decorre de princípio de ordem constitucional, da qual não nos é lícito sequer abrir mão. O nosso operariado não teme a retaliação policial mas respeita e acata as decisões de um poder que sempre pairou acima das paixões humanas. Dito isto, estamos certos. Conceder-se salário elevado por um falso princípio de solidariedade humana, sem levar-se em conta outros de caráter objetivo e subjetivo é manifesto suicídio. Repelir-se liminarmente os pedidos de reajuste salarial é manifesta subversão. É incentivar o ódio. É acalentar a miséria É encaminhar as massas ao desespero e frustração. É fazer medrar o que deve permanecer sem germinar. Não se pode assim acolher-se a sugestão da suscitada no sentido de repelir-se o presente dissídio de natureza econômica. Os interesses da política econômica do governo que exige um sustentáculo ainda que não possa ser atendida de forma cabal por pecar por excessos que podem e devem ser corrigidos. (31 de março de 1965) (grifos nossos).
A análise do juiz sobre a política pública adotada para conter a inflação, durante a ditadura militar, revela que a opção adotada teve um impacto direto sobre a classe trabalhadora, impedida de ter seu salário recomposto pelo índice oficial da inflação. Isso se reflete em menor poder aquisitivo e consequentemente em maior empobrecimento e diminuição do bem estar e da qualidade de vida.

Na linha contundente do olhar de Édouard Louis (3), as políticas de cunho neoliberal, como a que se apresenta explícita no processo, implicam muitas vezes na escolha de "quem vai morrer primeiro", em suas próprias palavras. O início do livro Quem matou meu pai, assim descreve a política:
Se considerarmos a política como o governo de seres vivos por outros seres vivos e a existência de indivíduos dentro de uma comunidade que não escolheram, então política é a distinção entre populações com a vida sustentada, encorajada, protegida, e populações expostas à morte, à perseguição, ao assassinato. (4).
O Centro de Memória do TRT-2 analisa a interferência do Poder Executivo sobre o Judiciário nos seguintes termos:

Durante a ditadura militar a Justiça do Trabalho sofreu uma restrição de seu poder normativo (competência para decidir, criar e modificar normas, em matéria de dissídios coletivos, sempre respeitando as garantias mínimas previstas em lei), bem como se viu limitada nas possibilidades de reajustes salariais controladas pela legislação criada nesse período.

A Justiça do Trabalho passou a sofrer pressões com relação ao julgamento dos reajustes salariais em dissídios coletivos. Os militares temiam que sua política econômica, o Programa de Ação Econômica do Governo (PAERG), alicerçada no arrocho salarial, fosse prejudicada pelo poder normativo da Justiça do Trabalho, que tinha autonomia para julgar os processos e os pedidos dos sindicatos de trabalhadores e patronais.

Gradualmente, nos anos após o golpe, as ações trabalhistas passaram a ser uma das poucas alternativas de reivindicação de direitos por parte dos trabalhadores, tendo em vista que as greves tinham se tornado praticamente ilegais com a publicação da Lei 4.330/1964 (a chamada Lei Antigreve).

A Justiça do Trabalho tinha sido alijada de seu poder de atuação e conciliação no caso das paralisações. Greve se tornou caso de polícia e responsabilidade do Executivo, restando à Justiça do Trabalho manter resistência no que dizia respeito ao seu poder de atuar como conciliadora e julgadora das causas individuais e coletivas em outras matérias.

Na 2ª Região, como medida assertiva em nome da manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho, foi criado, em 1965, o Setor de Estatísticas e Estudos Econômicos do TRT-2, com o objetivo de realizar estudos sobre custo de vida, para subsidiar as decisões do Tribunal com relação aos julgamentos de reajustes salariais em causas coletivas. Tratou-se de um posicionamento do Regional frente à Lei 4.725/1965, que impunha condições para o cálculo dos reajustes salariais, que deveriam ser baseados em parâmetros fornecidos pelo Departamento Nacional de Emprego e Salário, estando alinhados com a Política de Ação Econômica do Governo. Ainda que não fosse uma oposição aberta ao Regime, o TRT-2 tomava posição com relação à defesa de suas prerrogativas de autonomia. (5)
O olhar do juiz sobre o impacto direto da política adotada sobre a vida de quem é atingido por ela é um olhar sociológico, crítico e capaz de corrigir as distorções, no sentido da construção de uma sociedade mais justa.

Atualmente é a falta desse olhar que causa em nossa sociedade a validação de políticas de interesse claramente excludentes das classes minoritárias, a quem falta a força política capaz de reverter os prejuízos que recaem sobre elas.

Uma crítica que costuma combater essa postura da magistratura se funda no fato da não isenção, capaz de favorecer uma das partes do processo.

Contudo, somente a partir dessa análise global do conflito expresso no processo é que se torna possível a construção da chamada "solução mais ajustada", transformando a utopia da justiça social em justiça do caso concreto.

Carolina Nabarro assim descreve:

O juiz utiliza todo um conjunto orgânico de regras e diretrizes interpretativas e busca encontrar a solução mais próxima da justiça para o conflito social apresentado. As leis não começam ou terminam em si próprias, mas estão inseridas em um sistema que permite diversos tipos de interpretação. O juiz, diante de um caso específico, pode construir a melhor resposta utilizando-se das mais diversas fontes legais para respaldar seu entendimento e a solução mais justa…. A interpretação deve envolver a contextualização histórica e social do conflito. (6)
Assim, há na magistratura um espaço para a criação de soluções que contemplam os mais altos valores postos na constituição e no espírito das leis, e que se coadunam com a função social da justiça do trabalho de ser o fiel da balança de poderes desiguais das partes implicadas no processo.

E não há como dizer que tais decisões fogem de quaisquer balizamentos legais. São, ao contrário, muito mais embasadas no conjunto do ordenamento legal do que uma decisão meramente técnica, que não analisa o impacto global sobre o tecido social, já tão esgarçado em nossos tempos e marcado pela desesperança das classes sociais mais desfavorecidas e cada vez mais excluídas de direitos e sentido de cidadania, que explicam o radicalismo de posições e valores que permeiam as discussões políticas, como postas na atualidade.

Seria esse um exemplo de ativismo judicial? Esse conceito que remonta à Constituição de 1988 e que se encontra em discussão na atualidade caberia ao exemplo de decisão aqui exposta?

O ativismo judicial é caracterizado por uma postura proativa do Judiciário com vistas à concretização de direitos sociais. (7)

Um questionamento a essa postura se dá no sentido de que ela desequilibra o jogo de forças entre os três poderes da República.

Mas durante o governo militar o próprio Executivo rompeu o equilíbrio entre os poderes, através das diversas edições dos Atos Institucionais.

Em relação à Justiça do Trabalho a retirada do seu poder normativo, a prerrogativa na edição de regras entre as partes com força de lei em matéria de dissídios coletivos, que tratam fundamentalmente de aumento e recomposição salarial, explicita que a quebra se deu por iniciativa do Executivo.

A postura de enfrentamento de alguns desembargadores do TRT-2 mostra apenas sua resistência, na tentativa de se reapossar de seu dever legal de balancear a assimetria de poderes entre empregadores e trabalhadores.

A questão da política econômica adotada durante a ditadura militar é especialmente emblemática nesse tema do estreitamento dos limites entre as esferas de poder. E por esse motivo havia, inclusive, um monitoramento do posicionamento dos desembargadores nessa questão, que culminou com a aposentadoria compulsória de alguns deles, dentre eles Fernando de Oliveira Coutinho, citado na decisão elencada, anos mais tarde, com base no AI-5.

A falta de uma visão e comprometimento social das decisões judiciais talvez seja a causa da crise de legitimidade do Judiciário, e revela também a fragilidade de um Estado, que cada vez mais deixa de atuar como mantenedor da coesão social, ao deixar de exercer sua função primordial de diminuir as desigualdades de classe e promover a pacificação social.

E esse debate se torna mais importante no ano que marca os 60 anos do golpe militar, que através de sua política monetária acirrou as desigualdades sociais que nos atravessam até hoje e marcam nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) ROSSI, Carolina Nabarro Munhoz. O juiz visto por ele mesmo. São Paulo: Foco, 2023, pág.01;

(2) idem, pág.20;

(3) LOUIS, Édouard. Quem matou meu pai. São Paulo: Todavia, 2024;

(4) idem, pág.09;

(5) Carlos de Figueiredo Sá: um legado de resistência, in https://memoriatrt2.wordpress.com/2024/10/31/carlos-de-figueiredo-sa-um-legado-de-resistencia/. Acesso em 26 de novembro de 2024;

(6) ROSSI, Carolina Nabarro Munhoz. O juiz visto por ele mesmo. São Paulo: Foco, 2023, págs.86/87; e

(7) Ativismo Judicial, Princípio da Eficiência e Litigiosidade Repetitiva: Análise da Atuação do Judiciário na Efetivação dos
Direitos Sociais
Acesso em 26 de novembro de 2024.

*SCHEILLA REGINA BREVIDELLI

















- Bacharel em Direito pela Universidade de Direito da USP (2000)
-Servidora da Justiça do Trabalho da 2ª Região há mais de 33 anos
Atualmente está lotada na Divisão de apoioo técnico à gestão documental e memória.

Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Texto excelente. Parabéns! A crítica ao chamado ativismo judicial interessa a quem? Querem transformar o Judiciário, assim como já fazem com a Economia, em um instrumento "técnico" de manutenção da oligarquia, para impedir a efeito prático e popular da função social do Direito e do Processo, inclusive.

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