Autora: Isadora Wetterich Marmorato (*)
Introdução
A execução de alimentos é um tema recorrente no Direito de Família e, muitas vezes, envolve um complexo binômio entre necessidade e possibilidade.
Este binômio, consagrado no Código Civil Brasileiro, é essencial para entender as limitações e os desafios enfrentados pelos genitores que têm a obrigação de prestar alimentos.
A realidade cotidiana das Varas de Família revela um cenário repleto de obstáculos que exigem uma análise mais profunda do papel da justiça, do Ministério Público, e das políticas públicas envolvidas, de modo a garantir a dignidade e o bem-estar da criança, sem criar injustiças para o genitor inadimplente.
Este artigo busca explorar os principais aspectos que envolvem a execução de alimentos, as dificuldades do modelo atual e a necessidade urgente de repensar a forma como o sistema jurídico aborda o inadimplemento alimentar.
O Binômio Necessidade/Possibilidade e o Papel da Justiça
A definição do valor da pensão alimentícia deve ser balizada pelo binômio "necessidade/possibilidade", conforme estabelecido nos artigos 1.694, §1º, e 1.695 do Código Civil Brasileiro.
A obrigação alimentar, portanto, deve ser determinada de modo a garantir que o alimentante possa cumpri-la sem comprometer o essencial à sua própria manutenção, respeitando as limitações financeiras que possam existir.
O princípio da possibilidade estabelece que, para que exista a obrigação alimentar, é necessário que a pessoa de quem se reclamam os alimentos possa fornecê-los sem privação do necessário ao seu sustento.
Caso o devedor de alimentos não tenha recursos suficientes para suprir suas necessidades básicas, a imposição de uma pensão alimentícia elevada pode ser considerada injusta, uma vez que causaria prejuízos ainda maiores à sua própria subsistência.
Nesse contexto, a justiça deve ser sensível à situação econômica do devedor, reconhecendo que a execução da obrigação não pode gerar uma privação excessiva e desproporcional.
O Novo Perfil do Genitor em Débito Alimentar
Nas Varas de Família, tem-se deparado com um novo perfil de genitores inadimplentes, muitos dos quais vivem à margem do mercado formal de trabalho.
Muitos desses genitores já foram condenados criminalmente, fazem trabalhos informais, recebem auxílio por meio de programas sociais, como o cartão cidadão, e não têm acesso ou domínio sobre serviços bancários - o que torna difícil rastrear e cobrar o cumprimento da obrigação alimentar e/ ou, até mesmo, em ter êxito numa ação de revisão de alimentos.
Esse cenário revela a invisibilidade do genitor, cuja situação econômica limita suas possibilidades de cumprir com a pensão alimentícia no valor fixado, o que muitas vezes resulta na frustração do sistema de justiça.
A Sobrecarga das Mães Solo
Em contraste com a invisibilidade do genitor, muitas mães enfrentam a hipervisibilidade e a sobrecarga emocional e financeira de criar filhos sozinhas.
Elas são as responsáveis por garantir o sustento e a educação dos filhos, bem como por buscar judicialmente o cumprimento das obrigações alimentícias, frequentemente sem sucesso.
Quando o genitor é preso, por exemplo, a execução da obrigação alimentar se torna ainda mais difícil, muitas vezes sem retorno prático, já que ele se encontra em uma situação de privação e fora dos meios de execução efetiva.
O Fracasso da Execução Tradicional
O sistema de execução de alimentos tradicional, baseado na ideia de coação para garantir o cumprimento da obrigação, revela-se ineficaz diante da realidade de um devedor sem meios reais de pagamento.
Prisões, protestos e bloqueios bancários não têm efeito prático quando o alimentante não possui conta bancária, declarações de imposto de renda ou emprego formal.
A execução se torna um processo vazio, sem função restaurativa e sem efetividade, resultando em mais frustração para a mãe e para o menor.
O Papel do Ministério Público: Legalismo versus Realidade Social
O Ministério Público exerce papel fundamental na proteção de crianças e adolescentes, como garante o artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Sua atuação nas ações de alimentos é reforçada pela Súmula 594 do STJ, que assim dispõe:
Súmula 594/STJ: "O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em favor de criança ou adolescente, quando ausente o representante legal ou quando este estiver em conflito de interesses com o menor."
Apesar de sua importante função, muitas vezes sua atuação se restringe a um formalismo jurídico que ignora o contexto socioeconômico do devedor, opinando sistematicamente pela prisão civil.
Em muitas situações, essa recomendação reflete uma abordagem que desconsidera a realidade social e econômica do genitor inadimplente.
Ainda que amparada legalmente, a aplicação automática da sanção sem análise da real capacidade financeira do genitor pode transformar o processo em um instrumento de punição simbólica, desprovido de efetividade.
Dessa forma, o papel do Ministério Público deve ser mais atento às peculiaridades do caso concreto, buscando alternativas que, além de garantir os direitos do alimentando, também considerem as dificuldades enfrentadas pelo alimentante.
A falsa dicotomia: relativismo jurídico versus proteção da infância
É preciso deixar claro que não se trata de flexibilizar a obrigação alimentar nem de justificar a inadimplência do genitor.
O que se propõe é encarar, com honestidade, a realidade social em que muitos desses devedores estão inseridos.
A simples aplicação de sanções, quando desprovida de eficácia concreta, gera apenas uma aparência de justiça — enquanto a sobrecarga recai, cada vez mais, sobre as mães, e os filhos permanecem desassistidos.
Nesse contexto, torna-se valiosa a reflexão de Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco, ao afirmar que a equidade é uma forma superior de justiça. Para o filósofo, a equidade é aquilo que adequar à lei quando esta, ao ser aplicada de maneira genérica, gera resultados melhores.
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A equidade, portanto, não ignora a norma, mas a interpreta à luz das circunstâncias concretas.
Contudo, fazer esse balanço entre o rigor da lei e a adaptação justa à realidade não é tarefa simples - exige sensibilidade, prudência e esforço universal.
Assim, buscar o verdadeiro espírito da lei é também buscar a equidade: um caminho que reconhece as limitações materiais do alimentante sem perder de vista o direito fundamental do alimentando.
Repensando a Resposta à Inadimplência Alimentar: Políticas Públicas e Mecanismos Alternativos
Diante do cenário atual, é urgente repensar o modelo de resposta à inadimplência alimentar, que ainda se baseia, em grande parte, em medidas essencialmente punitivas, sem considerar soluções mais adequadas à realidade concreta dos envolvidos.
A aplicação mecânica de sanções, embora prevista em lei, nem sempre alcança o resultado pretendido — tampouco reverte em benefício direto à criança ou ao adolescente.
O modelo tradicional de execução, centrado exclusivamente no rigor repressivo, frequentemente falha ao ignorar as causas estruturais da inadimplência, como o desemprego, a informalidade e a falta de suporte familiar e comunitário. Em vez de promover justiça, muitas vezes agrava a exclusão social do alimentante, sem trazer qualquer melhora efetiva para o alimentando.
Soluções duradouras devem envolver não apenas o Poder Judiciário, mas também políticas públicas que incentivem a paternidade responsável, promovam educação financeira e favoreçam a reinserção do devedor na vida produtiva.
Não há uma fórmula única ou infalível. O que se impõe é uma reflexão séria, ética e comprometida, que reconheça a corresponsabilidade de diversas instituições e atores sociais.
Nesse contexto, é fundamental reconhecer que o enfrentamento da inadimplência alimentar não deve recair exclusivamente sobre o Judiciário, Defensoria Pública ou o Ministério Público.
É necessário articular uma rede de apoio mais ampla, envolvendo serviços de assistência social, conselhos tutelares, organizações da sociedade civil e demais atores comunitários.
A adoção de estratégias integradas — como programas de conscientização sobre a obrigação alimentar, capacitação profissional e fortalecimento de vínculos familiares — pode oferecer respostas mais eficazes.
Afinal, mais do que punir, é preciso transformar: garantir os direitos dos filhos sem sacrificar, em contrapartida, a dignidade do alimentante.
Conclusão: além da aparência de justiça
A execução de alimentos é um instrumento que deve buscar efetividade com justiça, como bem sabemos.
O binômio necessidade/possibilidade não é apenas um critério jurídico, mas uma exigência de equilíbrio e razoabilidade.
Este artigo está longe de esgotar o tema ou oferecer uma solução definitiva – aliás, é um desafio.
Seu objetivo maior é provocar reflexão, estimular o debate e fomentar a análise da realidade concreta dos milhares de processos de execução de alimentos que tramitam nas Varas de Família.
Somente ao reconhecer as múltiplas camadas do problema — sociais, econômicas, jurídicas e institucionais — será possível construir saídas mais razoáveis e eficazes.
Os menores, justamente aqueles a quem o sistema visa proteger, acabam sendo os mais prejudicados nesse limbo jurídico e social.
Por isso, urge repensar as estratégias de enfrentamento da inadimplência alimentar de forma mais eficiente, responsável e consciente na realidade do alimentante, sem tirar o foco, obviamente, na proteção integral da criança e do adolescente.
* ISADORA WETTERICH MARMORATO
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