©2025 Rômulo Gustavo Moraes Ovando
Se você já saiu do consultório médico com uma receita que mais parecia um eletrocardiograma do que uma orientação de tratamento, saiba: isso não é normal. Receita ilegível não é apenas um "problema estético" da medicina, é um potencial risco à saúde do paciente e, além disso, uma violação dos seus direitos enquanto consumidor.
Sim, consumidor. Porque o paciente, além de sujeito de cuidado, também é destinatário final de um serviço. E, justamente nesse contexto, a relação médico-paciente está amparada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). A medicina do século XXI, marcada por avanços científicos e exigência de transparência, não comporta mais improvisos ou informalidades onde deveriam prevalecer a clareza, a boa técnica, a precaução e a responsabilidade.
A prescrição médica é muito mais do que um papel contendo a nomenclatura química, genérica ou comercial de remédios. Trata-se, na verdade, de um instrumento formal de comunicação entre o médico, o paciente e o farmacêutico. Referido documento deve conter informações e orientações precisas sobre como utilizar os medicamentos, em que dosagem, por quanto tempo e com quais cautelas. Quando a letra está ilegível, essa comunicação se rompe - e o que deveria ser segurança vira risco.
De acordo com o artigo 6º, inciso III, do CDC, o consumidor tem direito à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, preço e o riscos que porventura possam apresentar. Tal direito aplica-se, com ainda mais rigor, ao setor de saúde, dada a sua sensibilidade e impacto direto na vida humana.
Para ilustrar a gravidade do problema, vale citar dados do Conselho Federal de Farmácia (CFF), que em 2019, constatou que 72% das receitas médicas apresentavam algum grau de ilegibilidade. Já em 2025, o CFF tem registrado um crescimento nas reclamações de farmacêuticos que relatam a dificuldade (ou até a impossibilidade) de decifrar prescrições. Alguns profissionais arriscam a leitura e dispensam medicamentos "com base na experiência". Outros, mais precavidos, preferem não vender, temendo cometer um equívoco. Em ambos os cenários, o prejuízo recai sobre o paciente: seja pela ingestão de medicamento errado, seja pela frustração de uma terapia necessária.
Diante disso, é importante frisar: quando um dano à saúde decorre de uma receita ilegível, o médico pode ser responsabilizado sob diversas vertentes, como nas esferas administrativa (por meio de processo ético-disciplinar), civil e até criminal. A responsabilidade pode, inclusive, ser solidária com o farmacêutico e o estabelecimento comercial (farmácia), caso fique comprovado que a venda equivocada cause prejuízos à saúde do consumidor.
Nesse sentido, o artigo 14 do CDC é categórico: o prestador de serviços responde, independentemente de culpa, pelos defeitos na prestação que causem danos ao consumidor. E sim, prescrição médica ilegível é um defeito.
Paralelamente, a Lei nº 5.991/1973, que regula o controle sanitário do comércio de medicamentos e insumos farmacêuticos, estabelece que a dispensação de receitas médicas depende da sua clara compreensão, exigindo expressamente que a prescrição seja legível. Essa legislação é corroborada pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018), o qual determina que todo documento emitido pelo profissional, incluindo a receita, deve ser redigido de forma legível, sem rasuras, e conter os dados de identificação do médico e do paciente. Isso não é gentileza: é norma. Portanto, negligenciar a legibilidade não é apenas descuido - é afrontar o ordenamento jurídico.
A tão discutida humanização da relação médico-paciente começa justamente pelo básico: ouvir, acolher, explicar... e, claro, escrever de forma que o paciente compreenda. Quando um profissional entrega uma receita ilegível, transmite uma mensagem implícita de que o paciente "não precisa entender". Isso reforça um modelo ultrapassado e autoritário de medicina, que já deveria estar superado.
A verdade é simples: o paciente tem o direito de entender o que está sendo receitado. Sua autonomia sobre o próprio corpo e tratamento depende dessa compreensão. Ignorar essa perspectiva é fomentar a desinformação, a insegurança e, não raramente, a judicialização.
E o que o paciente pode (e deve) fazer caso receba uma receita indecifrável?
1)Peça educadamente uma nova via legível: isso não é grosseria. É seu direito;
2) Se houver recusa, registre uma reclamação: no Conselho Regional de Medicina;
3) Procure o Procon: trata-se de violação ao direito básico de informação, previsto no CDC;e
4) Guarde provas: fotografe a receita, guarde recibos, notas fiscais, laudos médicos e tudo o que puder comprovar eventual dano à sua saúde. Esses documentos poderão ser úteis em uma denúncia perante o CRM e/ou ação judicial.
E o que o médico pode (e deve) fazer para evitar receitas ilegíveis?
1)Letra legível:use letra de forma ou cursiva clara. Se possível, adote prescrições digitais impressas ou sistemas eletrônicos;
2)Evite abreviações:utilize nomes completos de medicamentos, com dosagem, posologia, via e tempo de uso;
3) Inclua todos os dados obrigatórios: nome do paciente, data, identificação do médico (nome, endereço da clínica ou hospital onde trabalha, número de inscrição - pessoa física ou jurídica - no CRM e UF e assinatura) (carimbo não é obrigatório);
4) Revise a receita: verifique se está clara e compreensível antes de entregar; e
5) Oriente verbalmente: esclareça o tratamento. Compreensão gera adesão e autonomia.
Importa destacar que o propósito desse artigo não é criticar os profissionais da medicina. Muito pelo contrário. É imprescindível ponderar que a maioria atua com zelo, ética e dedicação. No entanto, é preciso reconhecer que a letra ilegível se transformou em um vício cultural - e chegou a hora de romper com esse hábito. Escrever com clareza é um gesto de empatia. É reconhecer que o paciente tem o direito e o dever de participar ativamente do próprio tratamento. É alinhar o ato médico à dignidade da pessoa atendida. Não menos importante, também é uma maneira eficaz de prevenir eventos adversos e consequentemente responsabilização profissional.
Num cenário em que tanto se fala sobre a judicialização da saúde, prevenir e mitigar erros começa com atitudes simples. Escrever uma receita legível é uma delas. Pode parecer um detalhe, que com certeza faz toda a diferença.
É chegada a hora de refletirmos sobre práticas que precisam ser atualizadas, tanto na saúde quanto no Direito. Receita ilegível não é "coisa de médico". É falha. É risco. E, sob todos os aspectos, é injustificável.
Seja paciente ou médico: a transparência, a confiança e a responsabilidade devem andar sempre juntas. A saúde e a Justiça agradecem!
Referências
BRASIL. Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1973;
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1990;
CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA (CFF). Receita ilegível: farmacêuticos relatam descumprimento da legislação.
Disponível em:
<https://site.cff.org.br/noticia/noticias-do-cff/04/01/2024/receita-ilegivel-farmaceuticos-relatam-descumprimento-da-legislacao>e
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Código de Ética Médica. Resolução CFM nº 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM nºs 2.222/2018 e 2.226/2019.
RÔMULO GUSTAVO MORAES OVANDO
-Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Católica Dom Bosco (2012);
-Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus (2014);
-Especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito/SP (2016);
-Mestrado em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco (2019);
-Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCeub;
-Advogado no Escritório Jurídico Moraes Ovando Advogados; e
-Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e FaPrime.
-Advogado no Escritório Jurídico Moraes Ovando Advogados; e
-Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e FaPrime.
Contatos: 67 99238 5742/ 67 3382 0663
E-mail: romuloovando@hotmail.com
Nota do Editor:
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