sábado, 16 de janeiro de 2021

A escuta musical na vida e na educação


 Autor: Carlos Soares(*)

Recordo bem de uma frase dita por um aluno anos atrás que tornaria a ouvir, com inúmeras variações, durante um bom tempo. A frase era: "Professor, baixei toda obra de Johann Sebastian Bach para meu HD". Hoje já não perdemos mais espaço em nossos discos rígidos com arquivos desse tipo, já que alguns sites e plataformas de streaming disponibilizam virtualmente toda a produção sonora do mundo. Recordo do estranhamento que a frase do aluno me causou. Será que ter a obra de Bach no Hd representava para ele (e mais várias pessoas) assimilar a música de Bach? Qual seria a melhor estratégia de se aproximar da obra de qualquer compositor? Como fazer um filtro da enorme produção musical acessível?

Por vezes, não nos damos conta de que, até o final do século XIX, grande parte do repertório só poderia ser executado em raras ocasiões e toda a música ouvida no mundo até então, salvo inusitadas exceções, só poderia ocorrer "ao vivo". Fico me perguntando quantas vezes os contemporâneos de Beethoven ouviram a Quinta Sinfonia. Hoje, para colocar o incrível e o bizarro de nossa época, é possível ouvir a Quinta de Beethoven o dia todo em incontáveis interpretações, com diversas orquestras, com instrumentos de época e inúmeras abordagens. Falo em Beethoven, mas poderia estar falando de qualquer compositor do planeta.

Passamos como humanidade por um salto tecnológico que nos conduziu em pouco menos de cento e cinquenta anos das primeiras e ruidosas gravações à comercialização da música, ao advento do walkman da Sony (com a ideia radical de que cada indivíduo poderia carregar seu próprio repertório e ouvi-lo sem importunar ninguém), à digitalização da música (que possibilitou que o HD do meu aluno ficasse lotado de Bach) até a criação das plataformas de streaming de música. As implicações e paradoxos desse salto tecnológico no mundo não cabem neste texto. Aponto, como exemplo, a dádiva do acesso ao conhecimento musical mundial e a verdadeira desgraça que essas novas formas de comercialização provocaram para diversos músicos e compositores.  Como meu foco aqui é falar sobre algumas estratégias na escuta de música deixarei os aspectos de direito autoral e indústria cultural para outra oportunidade.

Como aluno, e posterior professor de música, a audição do repertório em sala de aula sempre foi indispensável. Recordo, e sempre recordarei, dos encontros de História da Música na UFRGS, ministrados pelo Professor Celso Loureiro Chaves, e das primeiras impressões que o repertório Medieval e Renascentista (entre outros) me causaram. Na época, só conseguia ouvir muitos dos exemplos em aula, já que os discos eram importados e fora das minhas parcas condições financeiras. Mais tarde, quando ministrei por um breve tempo História da Música na Universidade Federal de Pelotas, baixei (tal como meu aluno) grande parte da música medieval e renascentista em algumas tardes para fins pedagógicos. O curioso é que os meus alunos não compartilhavam (e continuam não compartilhando) do meu assombro diante de tamanho super poder. A naturalidade do acesso parece ter banalizado o privilégio de viver no século XXI.

Sabemos que é virtualmente impossível ouvir toda música produzida no mundo. Diante dessa triste realidade, é imprescindível filtrar e sistematizar sua busca pelo repertório. Deixarei aqui algumas sugestões para ouvintes independentes que queiram aumentar seus conhecimentos e para professores que queiram utilizar música em sala de aula:


Tente sair de sua zona de conforto. Não faz o menor sentido ouvir somente aquela música que as mídias tradicionais reproduzem. Não faz o menor sentido ouvir somente aquelas músicas que você já conhece. Já que temos tanto acesso, que tal conhecer parte significativa dele? 

Informe-se antes de ouvir. Em várias fontes disponíveis, você pode conhecer os períodos da história musical ocidental, as principais características e estilos do Rock ou as principais características e tendências da MPB. A história da música ocidental que estudamos nos cursos de música, por exemplo, é dividida em períodos Medieval, Renascentista, Barroco etc. No processo de leitura, descubra quem são os principais compositores dos diversos períodos e informe-se sobre suas principais obras. Escute algumas dessas obras atentamente.

Ouça as diversas manifestações musicais do seu pais. O Brasil produz e produziu verdadeiras obras-primas em diversos gêneros.

Ouça diversas manifestações musicais não européias, músicas de outras etnias. Os mestres europeus continuarão sendo mestres, mas eles não estão sozinhos. Exemplos? Astor Piazzolla, Heitor Villa-Lobos, Duke Ellington, entre incontáveis exemplos. 

Ouça música de mulheres; há excepcionais compositoras para ouvir. As mulheres só não aparecerem mais nos livros de história pois nossa sociedade não permitiu que isso ocorresse. Exemplos? Clara Schumann, Sofia Gubaidulina, Jocy de Oliveira, Violeta Parra, Rita Lee, entre várias outras. 

Tenha um diário de audições. Anote título da obra, compositor, disco, banda e, de preferência, faça apontamentos das suas impressões gerais e subjetivas. 

Ouça qualquer repertório tentando evitar o juízo de valor imediato. Lembre-se que não interessa para o universo se você gosta ou não, e sim que você tente perceber quais são as características e impressões daquele repertório. É claro que com o tempo vai ficar claro o que você gosta ou não, mas, você será capaz de entender que determinada música, apesar de não ser do seu gosto, é bem feita. 

A música não é uma arte isolada (não existe isso). Assim como outras manifestações artísticas, é o desembocar do contexto histórico/filosófico/literário/político do qual pertence, portanto, na medida do possível, tente conhecer e se apropriar do contexto no qual aquela música ou compositor dialoga. 

O conhecimento musical, assim como qualquer conhecimento, depende de tempo e disciplina. Com o tempo, você descobrirá quais são seus músicos, compositores, maestros e bandas preferidas. 

Para os professores:

 

Tome cuidado para não parecer arrogante e detentor de um conhecimento superior. Impor qualquer tipo de conhecimento artístico é um ato ditatorial e desprezível. Antes de compartilhar qualquer tipo de repertório com os alunos, ouça o que estão ouvindo. Manifeste respeito com o conhecimento musical e o gosto estético dos seus alunos. Lembre-se de que seu exemplo e postura diante do repertório deles servirá de exemplo para quando eles forem os ouvintes de outros repertórios.

Por último, existem vários sites, livros e revistas que tentam apresentar playlists de repertório, como o livro “1001 discos para ouvir antes de morrer”. Com sugestão de leitura, deixo três títulos: "Escuta só" e "O resto é Ruído", de Alex Ross e "Alta fidelidade" (tanto filme quanto o livro de Nick Hornby). 

Boa escuta a todas e todos!

*CARLOS WALTER SOARES













-Doutor em Música, com habilitação em Composição Musical, e 
-Professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas.

Nota do Editor:

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