terça-feira, 13 de março de 2018

Há Excesso de Recursos ou Recursos em Excesso?




Afirmação constantemente propalada pela imprensa falada e escrita é a de que no sistema processual brasileiro há um excesso de recursos, o que constituiria a principal causa da lentidão da Justiça.

A frase é indiferentemente usada para referir-se aos processos cíveis ou criminais. Limito-me, aqui, a tratar exclusivamente dos de natureza civil, área em que atuo, embora me pareça que a situação não seja muito diferente na área criminal. Tentarei, na medida do possível, não falar em "juridiquês", visto que esse Blog se destina ao público em geral e não somente aos operadores do direito.

Recursos existem para garantir o direito fundamental de todo cidadão à ampla defesa, princípio insculpido como cláusula pétrea na nossa Constituição Federal (art. 5º, LV). A razão de sua existência, como parece óbvio, é que os magistrados, por mais cultos e conhecedores do Direito que sejam, estão sujeitos a erros ou enganos, como seres humanos que são.

Ocorre que há certa disfunção no sistema causada, de um lado, pelo abuso de sua utilização por advogados, procuradores de entes públicos ou estatais e defensores em geral, muitas vezes com nítido intuito de protelar o andamento dos processos e, por outro lado, pela atitude de membros do Poder Judiciário que, na ânsia de diminuir o acervo de ações a seu cargo, tomam decisões açodadas e, muitas vezes, indeferem pedidos ou recursos absolutamente procedentes, sob os mais variados pretextos que vão desde o fato de uma guia de custas estar com a autenticação ilegível, até a falta de comprovação da existência de um feriado municipal ou estadual, em que prazos não correm.

No primeiro caso o problema tem sido resolvido por um maior rigor na aplicação de penalidades às partes nas hipóteses de recursos manifestamente incabíveis, improcedentes ou protelatórios. Isso tem dissuadido principalmente os advogados (nem tanto os procuradores de entes públicos que alegam agir por dever de ofício) de recorrer mesmo sem fundamento sólido para tanto.

No segundo caso, porém, o problema vem se agravando, por vários motivos, entre os quais se destacam: (a) a chamada "jurisprudência defensiva" ([1]) e (b) a cada vez mais frequente utilização, nos Tribunais Superiores (STJ e STF), de decisões monocráticas, isto é, aquelas tomadas isoladamente pelo Magistrado Relator do processo, em causas que deveriam ser levadas a julgamento colegiado nas Turmas ou nos Plenários.

Essas decisões, por óbvio, são todas recorríveis, seja através de recursos previstos no Código de Processo Civil, seja por recursos previstos nos Regimentos Internos dos Tribunais, seja até, em alguns casos, pela via de Mandado de Segurança. Daí porque, ao tentarem "livrar-se" de um recurso, os julgadores acabam por provocar a interposição de outro recurso pela parte, visando alterar o indeferimento do primeiro recurso e, com isso, obter seu julgamento pelo mérito (no caso da "jurisprudência defensiva") ou pelo colegiado (no caso das decisões monocráticas).

Parece evidente que melhor e mais rápido seria se os recursos fossem logo julgados pelo seu mérito ou submetidos ao órgão colegiado, num ou noutro caso, com o que o Poder Judiciário estaria exercendo seu papel essencial que é o de resolver o litígio.


Talvez o exemplo mais emblemático dessa verdadeira perversão processual, seja o dos chamados "Embargos de Declaração" (EDcl). Trata-se de recurso dirigido ao próprio Juiz ou Desembargadores que julgaram a causa, solicitando a eliminação de eventuais pontos obscuros, contraditórios ou omissos de suas próprias decisões ou a correção de erros materiais nelas contidos (por exemplo, no caso em que a decisão condena o réu a pagar 1 milhão de reais, quando o que estava sendo cobrado eram apenas 100 mil reais).
Porém, salvo no caso de erro material, a absoluta maioria das decisões (ouso afirmar que em mais de 99% dos casos) proferidas em "EDcl" limitam-se a afirmar a inexistência de contradição, obscuridade ou omissão na decisão recorrida, sem qualquer outra consideração.

E, pior, como afirmou há pouco tempo o Desembargador aposentado, Dr. José Ricardo Nalini, ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo no "Jornal da Cultura" da TV Cultura de São Paulo, esse recurso seria considerado "ofensivo" aos juízes, porque os alcunharia de omissos, contraditórios ou dados a redações obscuras.

Trata-se, portanto, de um recurso praticamente inútil. Porém - paradoxalmente - se a parte prejudicada, por exemplo, por uma  omissão não ingressa com os "EDcl" contra a decisão proferida, a instância superior, por ocasião do julgamento do recurso a ela dirigida, se negará a reexaminar a questão omitida sob o argumento de que o assunto deveria ter sido, previamente, submetido novamente ao juiz que proferiu a decisão, através dos referidos Embargos de Declaração.

E casos há, nos Tribunais Superiores, em que as partes se veem obrigadas a ingressar com Embargos de Declaração de decisão proferida em Embargos de Declaração, para superar as "decisões defensivas".

Exemplo típico dessa profusão de recursos que os advogados, por vezes, são obrigados a interpor para superar óbices da "jurisprudência defensiva" é o julgamento proferido pela 4ª Turma do STJ, que conheceu e deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento, após a interposição de quatro Embargos de Declaração sucessivos (EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 540.217- SP Proc. 2003/0136387-6 - Acórdão disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=817546&num_registro=200301363876&data=20090309&formato=PDF). E cabe aqui, salientar o desassombro do advogado, que não se intimidou com a possibilidade de ser apenado com multa processual!

Enfim, trata-se de questão bastante complexa para tratar nesse exíguo espaço, mas, a meu ver, a causa do problema não está na existência de um excesso de recursos na legislação, mas na existência de recursos em excesso, causados, muitas vezes pelo próprio comportamento do Poder Judiciário, venia concessa.

REFERÊNCIA 

[1] "A jurisprudência defensiva consiste, grosso modo, em um conjunto de entendimentos — na maioria das vezes sem qualquer amparo legal — destinados a obstaculizar o exame do mérito dos recursos, principalmente de direito estrito (no processo civil, Recursos Extraordinário e Especial) em virtude da rigidez excessiva em relação aos requisitos de admissibilidade recursal." (cf. Zulmar Duarte de Oliveira Junior, Andre Vasconcelos Roque, Fernando da Fonseca Gajardoni e Luiz Dellore - CONJUR, 6/9/2013, https://www.conjur.com.br/2013-set-06/jurisprudencia-defensiva-ainda-pulsa-codigo-processo-civil#author

POR BATUIRA ROGERIO MENEGHESSO LINO













-Advogado em São Paulo;
-Graduado em 1972 pela USP;
-Atuando na área de consultivo e contencioso cível;
-É sócio do escritório Lino, Beraldi, Belluzzo e Caminati. 

Nota do Editor:
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