segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

FLY 3003



Autora: Lia  d'Assis*

De repente surgiu aquele carro. Do nada surgiu aquele carro. Ela freou com toda a força e sentiu o cheiro do pneu queimando o asfalto. Quando o carro parou, a milímetros do outro, ela fechou os olhos, as pernas bambas, nem ouvindo o palavrão do motorista que estava atrás. Pesava-lhe o corpo. Não era apenas a descarga de adrenalina. Pesava-lhe o corpo pelas tantas noites pouco ou mal dormidas. Pesavam-lhe as pálpebras pelas lágrimas não derramadas. Pesava-lhe a alma sem asas. 

Lentamente relaxou os dedos que, ato reflexo, apertavam com força o volante. Respirou fundo, os olhos ainda fechados, repetindo baixinho "Não foi nada, não foi nada", como um mantra que lhe devolveria o domínio das pernas. Foi despertada subitamente pelo barulho das buzinas. O sinal abrira e a longa fila de veículos reclamava seu direito de seguir a vida. Ou ao menos o caminho para o trabalho, para a escola, para o banco, para qualquer instituição que lhe engoliria a vida. Ainda trêmula, ela ligou o carro, engatou a primeira marcha, colocando-se em marcha novamente na procissão urbana. "Vai passar", pensou. Repetiu algumas vezes. Mentiras repetidas à exaustão acabam se tornando verdades, com ela haveria de dar certo. 

Mas não passava. Sentia na garganta a náusea. Os dissabores de anos, engolidos a seco, o medo de perder o emprego, de não conseguir pagar as parcelas do financiamento, noites em claro pensando se teria coragem de pedir o divórcio, a indiferença da família, a angústia de não se sentir bonita apesar de todas as dietas e todas as roupas novas, tudo lhe subia do estômago, mistura acre de nervosismo, dor e frustração. O sinal vermelho. Pare. Pare com isso. Ela repetiu: vai passar. 

Mas não passava. Olhou seus olhos no retrovisor. Antes perfeitamente delineados, agora eram duas manchas horrorosas, entre o roxo e o acinzentado. Ela passou a mão pelos olhos, pelo rosto, assim que freara bruscamente para evitar o acidente, espalhando a maquiagem mecanicamente feita naquela manhã. Ela passou a mão pelo rosto novamente, com cuidado, como se as manchas sobre os olhos fossem dois hematomas, duas bofetadas da vida. A carícia leve pela pele do rosto trouxe-lhe um breve meio sorriso. Há tanto tempo ela não se acarinhava, nem em gestos nem em palavras. Demorou-se no gesto, sentindo a ponta dos dedos desenhando os lábios, o nariz adunco, os cílios, as rugas, a linha de expressão entre as sobrancelhas, escavada pelas preocupações. 

Novamente o sinal verde, siga, as buzinas gritando: siga. Sempre em frente. Mas as pernas se recusaram. Ela novamente olhou seus próprios olhos no retrovisor. Há muito não se olhava nos olhos. Há muito não se encarava para não precisar reconhecer a dor, para não precisar dizer as verdades. E se olhando nos olhos ela soube – amava-se ainda. Quase tinha se perdido, mas era tempo. As buzinas continuavam, carros resfolegando como animais enraivecidos, motoristas a ultrapassavam gritando palavrões inaudíveis pelos vidros fechados, mas ela só olhos para os seus olhos, ouvidos para o silêncio que a tomava, um silêncio de compreensão. 

Como se tivesse emergido de águas profundas, ela de repente ouviu o barulho ao redor. Atrás dela, um motorista manobrava, tentando ultrapassá-la, e, logo o fez, o sinal fechou novamente. O homem gritava e fazia gestos impacientes e obscenos. Como se tivesse acordado de um sono profundo, ela acompanhava com esforço seus braços enfáticos. Achou graça, era como se ele fosse um daqueles bonecos infláveis colocados na pista para sinalizar obras, movendo desengonçadamente os braços. Ela começou a rir. E de repente, seus olhos desceram e se fixaram na placa do carro: FLY 3003. 

Leu novamente, agora em voz alta, a placa do carro. Notou que as letras formavam uma palavra em inglês. E os números, curiosamente, formavam um número que continuava o mesmo ao ser lido em ambas as direções. Como se chamavam esses números? Não se lembrava. Mas sabia o que significava a palavra, significava voar. Ela sabia por causa da única viagem internacional que tinha feito. Três mil e três. Também podia ser trinta zero três. Trinta do três. Sua data de nascimento. Como era mesmo o nome desse tipo de número?

Novamente o verde tomou conta dos semáforos e ela ligou o carro, ainda pensando no nome. Paráfrase? Paranomásia? Tinha certeza de que começava com "pa". Voar. Não podia ser "voe"? Não podia ser um convite? PALÍNDROMO! A palavra veio inteira em sua mente, em caixa alta. Era isso! Número palíndromo. Mas agora não era mais. Não era mais 3003! Era 30.03. Voe, 30.03! Era um convite, ela teve certeza agora. Um convite para as pessoas nascidas no dia 30 de março voarem. Um convite para que sua alma ganhasse asas. 

Ela prosseguia na longa avenida, agora as pernas obedeciam, a respiração se controlava, as mãos firmes, mas não mais tensas no volante. Dirigia como se a longa avenida não tivesse fim, e só muito depois percebeu que perdera a saída que a faria continuar no trajeto para o trabalho. Fez o primeiro retorno que encontrou. Sim, chegaria atrasada no trabalho. Mas estranhamente, essa conclusão não a afligiu. Dirigia devagar, como se nada ou ninguém a esperasse. 

Quando entrou na sala que dividia com mais três colegas, notou olhares estranhos. Passou a mão, instintivamente pelo rosto. Era a maquiagem borrada que criava aqueles pontos de interrogação nos olhos alheios? Ou era a flama que se via em seus próprios olhos? Não quis se explicar. Não queria palavra que rompesse aquele silêncio que a abraçava, compreensivo e benfazejo. Então apenas sentou-se em sua mesa. Diante do computador ainda desligado, um origami. Ela não sabia como aquele passarinho tinha vindo parar ali, mas sabia que, mais uma vez, eram as asas de que sua alma precisava tanto, tanto... 


* LIA D'ASSIS










-Pseudônimo de Juliana de Souza Topan é Licenciada em Letras;
- Mestra em Educação e Doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP;
-Professora de Literatura no ensino médio e superior no Instituto Federal de São Paulo (IFSP);
-Autora dos livros infanto-juvenis Embaixo da Cama (Adonis, 2013) e Janelas Abertas (Adonis, 2014), do volume de poemas Nem asas pelos ares (Urutau, 2017) e de contos e crônicas publicadas no blog Palavras em trânsito (www.palavrasemtransito.blogspot.com).  

Nota do Editor:

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