quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O alcance da Lei nº 9.658/1998 em relação aos planos de saúde não adaptados e não migrados


 Autora: Denise Pinheiro(*)


Primeiramente, necessário tecer alguns comentários sobre a origem de tal norma em nosso ordenamento jurídico. 

Diante das Operadoras de Planos de Saúde, os consumidores sempre foram considerados hipossuficientes, ou seja, encontram-se numa situação inferior seja pelo ponto de vista econômico, técnico ou mesmo jurídico; sofrendo, no dia a dia, espoliações frequentes daqueles. Com vistas a defender essa parcela da população, o Poder Constituinte de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXII, estabeleceu, dentre as garantias fundamentais, a defesa do consumidor, verbis:

"XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;"  

A defesa do consumidor foi positivada em 1980, com a edição da Lei nº 8.078. Posteriormente, em 1998, com a finalidade maior de resguardar os direitos dos consumidores de planos de saúde, que sofriam toda a sorte de práticas abusivas dessas operadoras, foi editada a Lei n    nº 9.656. Note-se: a lei foi editada com o fim último de salvaguardar o direito dos consumidores dos planos de saúde.

A Lei nº 9.656/1998 determina que será obrigatório o fornecimento de órteses, próteses e seus acessórios quando ligados ao ato cirúrgico (art. 10, VII), portanto, uma vez demonstrada a interrelação entre a cirurgia e tais aparelhos devida será a cobertura. 

A partir daí começaram a surgir verdadeiras batalhas judiciais, uma vez que as operadoras de planos de saúde, através da ANS, interpretaram a lei no sentido de que se não houvesse migração ou adaptação do plano antigo à nova Lei, esse plano antigo, independente se de alto custo ou não, teriam vetados o uso de próteses e órteses, como stents ou duplos J, mesmo pedidos pelo médico e justificados como necessários ao sucesso da cirurgia.

E os problemas começaram uma vez que se plano individual, você poderia adaptar ou migrar de plano, porém com aumento substancial no pagamento das prestações. Em 2011, a Resolução Normativa 254 da ANS limitou esse aumento ao percentual de 20,59% pós-adaptação. Porém se seu plano é coletivo por adesão, o que alcança uma maioria de contratos, mesmo de cobrança individualizada, você, beneficiário, não pode migrar nem adaptar, a Lei só permite que o órgão coletivo o faça e ele não o faz. Por que? Porque as operadoras de plano de saúde só aceitam o pedido de adaptação se o órgão coletivo se responsabilizar pelo pagamento de todos os planos contratados através dele, mesmo os de cobrança individualizada, logo, alcançando o objetivo que é o de limitar administrativamente esses planos de saúde firmados em data anterior à Lei nº 9.656/1998. Então, para você acabou, só restando a via judicial.

Logo, uma grande maioria de beneficiários de planos de saúde firmados anteriores à Lei e coletivos, a cada procedimento, precisam entrar com ação judicial com pedido de tutela de urgência, para sobreviver à dor ou à doença que cedo ou tarde sempre aparece. 

Mas vamos estudar o alcance da Lei nº 9.656/1998, pois essa análise é imperiosa aos contratos não adaptados e não migrados por força do sistema e da Agência. 

Para esse estudo faz-se necessário distinguir duas situações: 

1ª) contratos antigos, não adaptados e não migrados, com cláusula de auto-renovação e; 

2ª) contratos antigos, não adaptados e não migrados com vigência por prazo indeterminado

DOS CONTRATOS AUTORRENOVÁVEIS

É comum encontrarmos cláusula contratual de adesão em que se determina o período de vigência de 12 (doze) meses, renovável automaticamente por mais 12 (doze) meses, salvo manifestação contrária e escrita da parte com 30 (trinta) dias de antecedência ao término de cada período de vigência do contrato.

Ou seja, a cada 12 (doze) meses o contrato se renova automaticamente, caso não haja manifestação expressa e escrita em contrário. Juridicamente falando, essa renovação é denominada Novação Contratual. 

Ora, a novação é uma operação jurídica do Direito das obrigações, encontra-se na parte Especial, no Livro I, Direito das Obrigações, Título III, Capítulo VI, Art.360 à 367 CC/2002, que consiste em criar uma nova obrigação, substituindo e extinguindo a obrigação anterior e originária. Imaginando que tal contrato se renova até os dias atuais, a cada ciclo de 12 (doze) meses, portanto, o contrato vigente hoje entre as partes, caso tenha sido assinado em novembro de 1970 e tenha se renovado até os dias atuais, este corresponde a obrigação do período de novembro de 2019 a novembro de 2020. 

Portanto, cristalino concluir que a Lei nº 9.656/1998 alcança tais contratos, haja vista as sucessivas novações contratuais, na forma esculpida nos próprios instrumentos contratuais, o que concebeu novas obrigações, ao tempo em que extinguiu as obrigações primitivas. 

Logo, totalmente equivocado afirmar que a Lei nº 9.656/1998 retroagiu para alcançar os contratos auto-renováveis celebrados antes de 1998 e vigentes até os dias atuais. Houve, sim, a criação de obrigações em data posterior à promulgação da Lei 9.656/1998 e que, portanto, estariam, em consonância com o citado diploma legal. 

Nesse sentido:

"APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO SAÚDE. COBERTURA DE PRÓTESE/ÓRTESE. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. Contrato firmado em 1995 e renovado anualmente. Com a renovação incide a Lei 9.656/98, sem que se possa cogitar de desrespeito a ato jurídico perfeito. Com o advento da referida lei, art. 10, não poderá ser excluído da cobertura o fornecimento de próteses, órteses e material para síntese. Precedentes desta Câmara. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70009154592, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cacildo de Andrade Xavier, Julgado em 25/05/2005) (destacamos)"
Ante o exposto, não há que se falar na inaplicabilidade da Lei 9.656/98 para regular os contratos celebrados em data anterior à sua validade e renovados automaticamente após 1998. 

CONTRATOS COM VIGÊNCIA POR PRAZO INDETERMINADO

Nesse tipo de contrato, o argumento cingir-se-á ao Código de Defesa do Consumidor.

Cumpre esclarecer que a Lei nº 9.656/1998 não limita a eficácia do Código de Defesa do Consumidor, cujas normas devem permear todas as relações de consumo. Portanto, quando o diploma legal específico não for aplicável à matéria, urge buscar a solução do conflito por intermédio da aplicação da norma geral.

O Código de Defesa do Consumidor preceitua, no art. 51, IV e § 1º, II que:

"Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[   ]

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

[   ]

II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;"


Porque são abusivas!

O contrato de seguro de saúde tem por objeto a cobertura das despesas decorrentes de assistência médica-hospitalar necessária para resguardar ou restabelecer a saúde do consumidor. Quanto aos seguros de saúde, Arnaldo Rizzardo (in Planos de assistência e seguros de saúde, Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999. Página 14) esclarece que "Esse seguro visa a garantir o pagamento de determinadas importâncias no caso de acontecerem certos fatos previstos como riscos e ligados à saúde da pessoa. O segurador se obriga a cobrir as despesas ligadas à saúde e a hospitalização. A proteção, pois, é contra os riscos acarretados por doenças e outros males do corpo e do espírito humano, de modo que se tenha a garantia da assistência médico-hospitalar."

Nesse sentido, se para restabelecer a saúde do consumidor se faz necessária uma cirurgia com a utilização de próteses/órteses e seus acessórios, o acesso a tais providências deverá ser garantido pela seguradora. É simplesmente o cumprimento do objeto da relação obrigacional, qual seja, assegurar ao consumidor o acesso a assistência médica com o fim último de restabelecer a sua saúde. 

Nesse sentido, afirmou a D. Ministra Nancy Andrighi, ao proferir o seu voto no julgamento do Recurso Especial nº 319.707 – São Paulo (2001/0047428-4):

"O contrato é aleatório porque o cumprimento da obrigação do segurador depende de se e quando ocorra aquele evento danoso. Todavia, o segurador estará obrigado a indenizar o segurado pelos custos com tratamento médico adequado desde que sobrevenha a doença, sendo esta a finalidade do seguro-saúde. 
Assim sendo, a exclusão da cobertura, a priori, de determinado procedimento médico, ferirá a finalidade básica do contrato se, no caso concreto, este for justamente o essencial para garantir a saúde e, algumas vezes, a vida do segurado. 
Por esses motivos, é de se concluir que a cláusula excludente, in casu, de cobertura de transplante de fígado, procedimento médico que se tornou, pela natureza da doença sofrida pela segurada, o único capaz de curá-la, e, até, de garantir sua vida, atenta contra o objeto do contrato, em si, frustra seu fim, restringindo os efeitos típicos do negócio jurídico, tornando-a inválida pelo disposto no art. 115 do Código Civil.
Note-se, ainda, que, além de malferir o fim primordial deste seguro, a cláusula restritiva de cobertura, ora em comento, acarreta desvantagem excessiva ao segurado, pois este celebra o contrato justamente por ser imprevisível a doença que poderá acometê-lo, por recear não ter acesso ao procedimento médico necessário para curar-se, com o intuito, então, de se assegurar contra estes riscos."
Prosseguindo, a D. Ministra conclui que as cláusulas de contratos com operadoras de saúde que visem restringir o acesso dos consumidores a determinados procedimentos médicos são inválidas, senão vejamos

 "Assim, apesar de não invocada a proteção legal do CDC, deve-se mencionar, apenas para contribuir com o exame do seguro-saúde, que a cláusula em comento também pode ser considerada inválida consoante os art. 51, § 1º, inciso II, do CDC, porque restringe direitos ou obrigações inerentes à natureza do contrato, ao afrontar seu próprio objeto, e por aplicação do art 51, inciso IV, do CDC, pois coloca o segurado em desvantagem exagerada em relação à seguradora."

 Tendo em vista que o cerne do contrato em tela é assegurar a saúde do consumidor, assim como advertiu a D. Ministra em seu voto acima, qualquer cláusula contratual predisposta que vede o acesso a serviços e produtos necessários para o seu cumprimento, fere de morte o equilíbrio contratual e deve ser havida como nula de pleno direito.

Logo, são inválidas as negativas dos planos de saúde para o cumprimento da obrigação de arcar com as despesas geradas por ocasião da utilização de órteses/próteses pelo consumidor, haja vista que o Código Consumerista proíbe a edição de cláusulas abusivas que importem na violação do objeto do contrato. 

Portanto, sendo o contrato antigo autorrenovável ou com vigência por prazo indeterminado, há de se autorizar o uso de órteses/próteses ligadas ao ato cirúrgico, seja porque a Novação Contratual está ao amparo da Lei nº 9.656/1998, ou seja porque o contrato de seguro médico é um contrato regulado pelo Código Consumeirista, que proíbe a edição de cláusulas abusivas que impliquem na violação do próprio contrato.

*DENISE PINHEIRO















-Formada em Direito pela UNIPAC campus I( 2004);
-Pós graduada lato sensu (especialista) em Direito Civil pelo CESA em 2009;
-Extensão em Direito Imobiliário pela FGV(2016);
Pós graduanda em Mediação de Conflitos pelo Instituto de ensino Centro de Mediadores em Brasília;
-Militante nas áreas cível, consumidor, contratual, seguros, trabalhista, administrativo e empresarial desde 2005;
-Advogada autônoma militante nas áreas cível, consumidor, contratual, seguros, trabalhista, administrativo e empresarial desde 2005.

Nota do Editor:

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