segunda-feira, 24 de abril de 2017

Um Conto da Meia-Noite



Todos os assuntos tratados à meia-noite ficam mais sérios.

Yolanda concordou que a sentença fora dita corretamente. Procurar por uma cartomante, sem saber ao certo da sua existência, parecia uma brincadeira de criança, mas fazer isso tarde da noite despertava os instintos e os medos mais primitivos.

-Não importa. Estamos aqui e vamos até o final.

As três amigas já haviam caminhado muito e se arriscado muito, pois seriam severamente castigadas pelas pessoas da sua vila, se essas soubessem para onde elas estavam indo.

Por sorte – ou azar – era noite de lua cheia e o satélite iluminava a mata e as três amigas foram serpenteando sobre os trieiros até encontrar aquela choupana pela primeira vez na vida.

-Você bate na porta!

Yolanda recebeu com espanto a ordem das duas amigas.

-Por que eu?

Não foi possível argumentar. Afinal de contas a curiosidade as havia levado até lá. Seria o desejo de controlar o destino? Ou melhor, de se antecipar ao destino. Brincadeira de criança?

Três batidas tímidas foram suficientes para a porta se abrir.

- Não vi ninguém abrindo a porta. Como isso aconteceu?

A respiração das jovens agora estava suspensa. Nenhuma luz iluminava a velha casa. Nenhum som no seu interior. 

- Não tem ninguém neste lugar. Caímos como bobas numa estória contada para boi dormir. Vamos embora agora.

Ao virarem de costas um vento frio soprou os cabelos das jovens e as folhas espalhadas pelo chão.

- Entrou cisco nos meus olhos.

Com os olhos cerrados contra o vento e o tempo, pois logo seria dia, as jovens iniciaram a jornada de volta para a vila quando Yolanda foi pega pelo braço.

- O que você precisa saber? Pode me perguntar.

Os gritos das adolescentes ecoaram por toda a floresta. Pássaros que dormiam revoaram, lobos uivaram para acompanhar os urros afinados das duas jovens que corriam de volta para casa como gazelas fugindo de uma onça.

- O que você precisa saber? Pode me perguntar.

Yolanda não conseguiu acompanhar as duas amigas. Ela ficou petrificada com a presença daquela mulher de cabelos brancos, pele cinza, olhos opacos e corpo frágil. A voz, no entanto, denotava autoridade e um tipo de confiança que só o tempo é capaz de forjar.

- O que você precisa saber? Pode me perguntar.

Naquele momento nada passava pela cabeça de Yolanda. O medo paralisou os músculos e a mente. O vento assobiava forte, os galhos bailavam nas copas das árvores, num movimento que contrastava com a inércia de Yolanda.

-O que você quer saber? Pode me perguntar.

Os jovens sempre agem como jovens. Eles procuram a aventura, mas não planejam a viagem. Há poucos dias as jovens ouviram a lenda – assim pensavam – da cartomante que morava sozinha na floresta. 

Como jovens que eram duvidaram. Eram jovens - não se esqueceram da história - e se entregaram à imaginação.

- Essa cartomante existe? Porque ela nunca foi vista na nossa vila? Será que ela sabe tudo mesmo? 

Não se sabe explicar porque as mulheres são mais curiosas que os homens. Mas elas são. É fato também que as três jovens, receando um futuro cheio de problemas, de misérias e de doenças – como sempre acontecia na sua vila – resolveram que iriam perguntar para a cartomante qual seria o destino delas.

- Você veio aqui para me perguntar. Você não sabe fazer uma pergunta? Sou velha e logo estarei misturada com a terra. Pergunte-me! Pergunte-me! Eu sei que estou morrendo e não posso deixar de responder a mais uma pergunta. Vamos piralha!

O que se sente quando se está perto da morte? Yolanda sempre se fez essa pergunta. Era curiosa e ansiosa. Não sabia esperar. Afoita, acreditava que a contemplação e a aceitação eram coisas interditas para os jovens. Ah, os jovens.

- Não me deixe morrer sem responder a mais uma pergunta!

A cartomante – ou bruxa – ninguém nunca soube explicar, agora usava um ar ainda mais assustador. Era uma ordem. Era uma urgência. E nunca se deve deixar de atender o último pedido de uma pessoa.

Yolanda estava petrificada e nada podia falar ou responder. Na vida somos sempre mal compreendidos e a inércia da jovem foi encarada como desprezo e desconsideração. Enfurecida a velha mulher vaticinou:

- Você só vai morrer no dia em que o seu amor morrer.

O susto foi enorme. Como aquela bruxa poderia saber da existência de Antônio? Yolanda amava Antônio profundamente e sabia que se casaria com ele. Foi por isso que ela foi à floresta. Ela só precisava saber os detalhes de como seria a sua vida a dois. Foi isso o que a levou a enfrentar a mata à meia-noite. 

***
Antônio era um jovem rico e bonito. Jovem, rico e bonito. Três palavras que soam como música para os ouvidos de uma mulher.

Meu Antônio isso, meu Antônio aquilo... Todos os assuntos de Yolanda a levavam a Antônio e ao casamento. Diga-se de passagem, ninguém nunca havia se preparado tanto para um casamento.

O enxoval é um assunto seríssimo para uma mulher e o enxoval de Yolanda era o assunto de toda a vila. Ele tinha custado uma fortuna... a inveja, entretanto, veio de graça.

A exultação de Yolanda incomodava suas amigas. Mulheres são competitivas e as amigas de Yolanda começaram a odiar aquela incontida felicidade. Tanto ódio e tanto olho gordo fizeram com que Antônio se interessasse por outra moça em pleno noivado. O rompimento foi feito por um simples bilhete que nada explicava, apenas indicava o fim do relacionamento.

Yolanda, que iria se casar, que teria filhos, que seria rica... ficou a ver navios.

***
As dores do amor são piores que a do parto.

A vida de Yolanda era agora dividida entre o esforço de esquecer Antônio e receber suas poucas amigas, que sempre traziam notícias do amado.

- Ele agora vai se casar e dar um anel de brilhante para aquelazinha. Petulante. Ele bem que poderia se mudar daqui. Ele é rico. Porque não se muda para São Paulo?

As pessoas pequenas sempre trazem notícias que afligem os amigos, no intuito falso de demonstrar consideração com a dor alheia. Realmente a inveja é a paralisia da alma.

Passados 10 anos a vida não havia voltado para Yolanda. Desde que Antônio se casara, o entusiasmo abandonara aquela pobre mulher. Música, poesia, comida, livros, nada preenchia o seu vazio existencial.

Perder é normal, conviver com a derrota não é. A vila era pequena e não havia como Yolanda não receber notícias sobre Antônio, o homem mais rico da região, pai de três filhos e o pior, bom marido!

O verde e as lembranças foram embora junto com a felicidade de Yolanda. Já não havia mais florestas naquele lugar. Tudo havia sido derrubado para a formação de pastos. Estradas foram construídas. Duas ruas paralelas demonstravam como agora viviam Yolanda e Antônio. Ela adoeceu. Definhou. Melhor assim, ela concluiu.

As amigas, todas já casadas, acorreram à casa de Yolanda, que morava sozinha. Filha única, ela perdera o pai - um militar sério que nunca tinha feito a barba - e a mãe logo após o término do seu noivado. A última década havia cobrado um preço alto. 

- As coisas ruins andam sempre em bando.

Naquela noite o padre deu a extrema unção. Era noite de lua cheia. Nenhum cachorro latiu durante a madrugada. O cheiro da morte deixou todas as pessoas arrepiadas. Elas só podiam aguardar e rezar.

***
Yolanda acordou pela manhã como se tivesse acontecido. As pessoas ficaram num misto de espanto e felicidade.

- Ela não tinha que ter morrido?

-  Você quer que os outros morram?

- Num quero não. Só acho que era pra ter morrido.

A gente pequena da região comentou o caso por muito tempo. Foi Deus ou foi o sobrenatural? Ah, bobagem! Como se vai acreditar no sobrenatural se as pessoas desconfiam hoje em dia até da existência do Divino? 

Para Yolanda pouco importava todas essas questões. Uma nova chance lhe fora dada e ela teria que aproveitar.

Não aproveitou.

Logo a euforia foi abafada pela lembrança de Antônio. Da vida que não tiveram. Das viagens que não fizeram. Enfim, um fim.

O tempo passa rápido e Yolanda contava vinte anos do “término” da sua vida. Aliás, vinte anos e dois dias. Melhor seria se não lhe perguntassem os minutos, pois não se duvidava que ela também os contasse.

A vila agora era uma pequena cidade, pequena, mas apesar disso os seus caminhos nunca mais se cruzaram. Eram como duas retas paralelas. 

A fama precede o homem e Antônio fora eleito Prefeito e em seus discursos, amplamente comentados na cidade, elogiava sempre a “primeira dama”.

- Prefiro morrer!

Tudo que se deseja acontece e Yolanda ficou muito doente. Não existe remédio para a dor do amor e por isso os médicos puderam fazer muito pouco. 

- Eu vou morrer. Aliás, eu já morri.

As amigas de Yolanda agora não tinham mais inveja. A idade faz bem para as mulheres. Maduras, com os filhos criados, elas deixam de competir entre si e encontram a amizade que a juventude retardou.

- Não fale assim Yolanda. Não fale assim.

- Eu quero morrer e preciso descansar. Eu preciso morrer.

A mente cria a realidade. As pessoas se apinhavam em frente à casa de Yolanda em oração. A vigília da noite era regada pelo orvalho frio. Faz frio em outubro no cerrado. 

- Faz frio é no coração de Yolanda, disse uma amiga para outra.

***
Ao final de cada crise Yolanda ressurgia forte, o que deixava todos aliviados e também assustados. Mas num repente a vitalidade ia embora e ela logo se entregava à tristeza e voltava a remoer a felicidade perdida.

- Eu preciso acabar com essa vida.

As pessoas, bem poucas, que conviviam com Yolanda faziam o sinal da cruz ao ouvir as suas palavras.

- Não diga isso. É pecado.

- Eu preciso acabar com essa vida.

Yolanda ficava repetindo esse seu mantra e com isso as poucas pessoas que conviviam com ela se preocupavam cada vez mais com a sua saúde mental.

Como sempre acontece com as pessoas que estão presas ao passado, Yolanda não conseguiu conter as areias do tempo. Cinquenta anos. Cinco décadas. Como o tempo voa! Será por isso que os sonhos não realizados têm asas?

Antônio se tornou tudo o que Yolanda sempre esperou. Ex-prefeito, ex-deputado, rico, culto, respeitado, marido, pai e avô. Seis netos. Lindos. A alegria da família.

- Yolanda precisava morrer. 

-  Eu preciso acabar com essa vida.

Yolanda estava presa ao passado. O passado para ela estava ali, esbarrando em cada corredor da sua vida não vivida. Não estudou. Não trabalhou. Não teve forças para construir uma existência. 

***
Yolanda foi para a cama novamente, com esperanças de encontrar a morte, que insistia em não aparecer.

- Vossa Excelência tem que aparecer. Sua visita vai fazer bem para ela. 

Antônio estava dividido. Nunca mais ele tinha conversado com Yolanda. Aliás, ele se recordou que nunca chegou a dizer o motivo do rompimento. É ruim quando as coisas acabam, mas não terminam.

Yolanda ao longe repetia o seu mantra:

- Eu preciso acabar com essa vida.

O povo simples suplicou a Antônio. 

- Doutor, o senhor tem que fazer essa caridade. O senhor tem que correr. O tempo está passando. Amanhã pode ser tarde demais.

Antônio comentou com sua esposa que iria fazer uma visita para uma antiga amiga.

- Como eu nunca ouvi você falar dela?

Era uma boa pergunta. Antônio havia simplesmente ignorado Yolanda. Ela nunca tinha feito nada de errado. Ela era bonita, jovem, inteligente. Não havia um motivo concreto. Nunca houve. Uma hesitação? Um desejo de ficar solteiro por mais algum tempo? O medo de assumir responsabilidades sendo jovem, rico e bonito? Nunca se saberá explicar.

Antônio pensou em usar uma roupa simples, ele não queria impressionar Yolanda, mas mudou de ideia. Todos sabiam quem ele era e não adiantava disfarçar.

***
Umas poucas pessoas esperavam Antônio na porta da casa de Yolanda. Na verdade era a casa dos pais dela. Yolanda nunca conseguiu sair do seu passado.

Uma vizinha, viúva, levou Antônio até a sala. Ele viu que estava tudo igual. Todos os móveis no mesmo lugar. Os retratos dos pais dela na parede. Assustado Antônio viu o seu retrato em cima de um aparador.

- Meu Deus.

Antônio foi avisado de que Yolanda estava na cama. O encontro não podia mais ser adiado. Ele entrou no quarto. Ela estava recostada na cama, encoberta por um fino lençol. Aquela era a cama de casal dos pais de Yolanda. Dois criados mudos ladeando o leito formavam o quadro de um museu, que guardava intactas todas as características de 50 anos atrás. Antônio sabia que não tinha dado qualquer explicação. Tinha sido insensível. A conversa que fora adiada por todos aqueles anos iria começar.

- O que você precisa saber? Pode me perguntar.

Yolanda perdeu a respiração. Ela nunca esquecera essas palavras e essa mesma pergunta. Não, não podia ser coincidência. É a mesma frase. Cada palavra, cada entonação, cada pausa, em tudo idêntica à pergunta feita pela cartomante – ou seria uma bruxa? – há meio século.

- O que você precisa saber? Pode me perguntar.

Coincidência? Nunca! Yolanda havia perdido o gosto pela vida. Ela desejava ardentemente abandonar a sua existência, mas estava presa. 

Yolanda olhou atentamente para Antônio. Um homem com seus setenta anos. Olhos firmes. Coluna ereta. Dedos grossos. Fala confiante. Em tudo ele era como um jovem. Levará mais de vinte anos para ele morrer, concluiu a aflita mulher.

- Terei que vê-lo brilhar ao lado de outra mulher por mais tanto tempo? Vou ser sempre lembrada do que perdi? Vou sempre me culpar por não ter tido a coragem de seguir em frente? Os pensamentos atormentavam a pobre mulher.

Ela não podia mais viver assim. 

- Eu preciso acabar com essa vida.

O rosto de Antônio ficou pálido quando ele encarou o revólver que Yolanda havia retirado da cômoda do seu pai e apontava em sua direção. Um disparo certeiro atingiu em cheio o coração do homem, que morreu instantaneamente.

Yolanda soltou a arma, deu um profundo suspiro e faleceu. A bruxa – ou seria uma cartomante? – acertou a sua última previsão. Mais uma sentença que fora dita corretamente:

Você só vai morrer no dia em que o seu amor morrer.”

POR LUCIANO ALMEIDA DE OLIVEIRA











- Marido, Pai,Advogado, Escritor 

Nota do Editor:

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Um comentário:

  1. Quando jovens em arroubos procuramos respostas. Sonhamos e deliramos com nossas maiores fragilidades. Construímos nossas vidas em alicerces de areia.
    Yolanda não viveu, mas matou a sua vida...
    O que você precisa saber? Pode me perguntar...

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