@2025 Maria Lucia Mazzei de Alencar
A casa dos meus avós sempre habita os meus sonhos. Era um casarão delicioso, um amplo sobrado no Brooklin Novo, na Rua Luisiana, com um terreno tão grande que se alongava quase até a rua paralela atrás, a Geórgia. Mesmo em quadras próximas à Av. Santo Amaro, o Brooklin dos anos cinquenta, sessenta, ainda contava com muitos terrenos baldios, cheios de árvores e matos deliciosos, pés de amora que saíamos a catar, espaços ideais para construirmos cabanas, meus irmãos e eu, junto às minhas primas com idades próximas a minha. Minha tia, irmã de mamãe, morava ao lado. Um portãozinho no quintal das duas casas facilitava o acesso e o atravessávamos o tempo inteiro.
Minha avó fazia questão de ter pequenos galinheiro e pomar, com bananeiras , goiabeiras e até parreiras de uva numa parte mais elevada, formando um quadrado, que usávamos como palco para as apresentações infantis, que eu teimava em escrever e dirigir, usando meus pobres irmãos e primas como atores, nem sempre dóceis. Claro que a plateia paciente era a família e os amigos.
Para completar, a cozinheira negra e gorda, Dona Eudóxia, boa gente, parecia a Tia Nastácia, vinda diretamente dos livros de Monteiro Lobato, por mim adorados e aterrissara na casa dos avós. Lembro-me muito dela nos almoços familiares de domingo, com grande parte da família reunida e, também os agregados. As crianças atazanavam a carinhosa Dona Eudóxia a mais não poder, roubando seus bolinhos antes de chegarem à mesa, ou os ingredientes de sua cozinha para as nossas comidinhas de bonecas. Como estas eram inanimadas, obrigávamos, malvadas, os meninos mais novos comerem as nossas sopas, mesmo salgadas e avinagradas!
Meus avós hospedaram – para curtas e longas estadias- muitos de suas famílias, de ambos os lados e até os amigos dos filhos. Eram muito generosos e hospitaleiros. Havia sempre muitos agregados naquela casa. Minha família nuclear morou nesse casarão por quase dois anos, enquanto meu pai construía uma casa nova. Apesar dos agregados, ainda ficamos muito bem acomodados! Anos depois, eu mesma morei alguns poucos meses com os avós, durante meu primeiro ano de faculdade, depois de brigar com mamãe; logo voltei para minha casa.
São meus avós maternos, Leli- Maria José Silveira Mello e José Ribeiro Mazzei, minha principal inspiração e paradigmas. Uma das coisas que eu gostava do casarão do Brooklin era a sua escadaria, onde Vovó Leli pendurava na parede lateral quadros com fotos antigas dos antepassados e da família. Quando morei num gostoso sobrado no Jardim Paulistano, recriei a escadaria dos avós, com muitas fotos e histórias. Ainda hoje, já em pequeno apartamento, mantenho os seus retratos e os dos bisavós, que me olham com doçura...
Meu relato se passa no final dos anos cinquenta ou início dos sessenta, quando fomos morar na casa desses fantásticos avós maternos, de quem mais tarde escreveria a história de vida. Eu teria entre nove e onze e nessa época e éramos em seis, minha irmã caçula ainda não tinha nascido. Contava ao meu lado com as primas, Sandra, que tinha a minha idade, Leda, um ano mais, e isso era incrível para nós. Brincávamos todo o tempo disponível. Em parte, essa condição não foi tão boa para mim, pois, acabei desistindo das aulas de piano e, ao que se dizia, tocava bem para a idade. Este prazer de tocar piano nunca mais consegui retomar, mamãe inconformada o vendeu, uma pena!
As brincadeiras eram constantes. Minhas primas gostavam mais dos jogos femininos, de casinha, de bonecas, de fazer comidinhas... mas muitas vezes descíamos a rua e entrávamos na Hípica Paulista, onde eram sócias, admirar os cavalos e alguns com sorte até conseguíamos montar, mesmo sem possuir nenhum. Contudo, eu gostava também das brincadeiras que envolviam aventuras e riscos. Assim é que eu convenci as primas a ir num terreno desocupado e ainda não desbravado por nós, a algumas quadras de casa, indo pela rua Nova Iork em direção à Av. Central, hoje Padre Antonio Jose dos Santos. "Para nossa segurança, lhes disse, vamos levar Paquito, o seu lulu", todo pretinho, uma graça.
Ao chegarmos, surpresa! Os donos do terreno lá estavam, um punhado de meninos do bairro que não conhecíamos e nos assustaram. Barraram nossa entrada. Desviamos e fomos nos esgueirando, "só viemos catar as amoras, o terreno não pertence a vocês". Eles nos barraram de novo, gritando conosco. Atiçamos Paquito contra eles, "ISCA, ISCA Paquito" mas ele negou fogo, ganiu baixinho e se escondeu atrás das primas. "Paciência, voltaremos na hora do almoço quando os comilões devem comer". "E nós?" gemeu Sandra. Eu só pensava na disputa e em enganá-los com astúcia.
Voltamos, o lugar estava vazio. Catamos muitas amoras e quando saímos, já no meio do caminho de volta, sempre com nosso guardião canino, a gangue chegou. Ao ver que desobedecêramos, puseram-se a correr atrás de nós e a nos atirar pedras. Nós, pernas para que te quero. Mas eu, esquentadinha, tinha que aprontar. Peguei uma das pedras que vieram e atirei-a de volta. "TOMEM DESGRAÇADOS". Daí uma das pedras me atingiu, entre nariz e boca, sangrando imediatamente. Leda, a mais velha, ralhou: "agora chega e vamos já pra casa"Ficou pequena cicatriz bem vermelha. Depois foi clareando. Hoje só com lupa. Nunca me incomodou, ao invés, levava-a como troféu de glórias passadas.
Ao chegarmos, estavam na entrada vovó e Rui, meu irmão mais velho (com 13), já então um machinho alfa. Choramingamos e fizemos as “inocentes” do Brooklin. Rui falou: "mas vocês não os provocaram"? "Nãooo." "Agora estou atrasado para a escola, mas amanhã vamos lá no horário em que vocês encontraram os caras".
O uniforme de Rui era muito parecido com o de um guarda, bem imponente. Fingiu-se de policial, mandou que os meninos se sentassem no chão e lhes deu bronca enorme! Só então reparamos, os garotos eram menores do que meu irmão, provavelmente da nossa idade. Ou seja, fôssemos todas briguentas, teríamos os enfrentado. Corajoso, solidário, meu irmão, de pé, pontificava: "em mulher não se bate nem como uma flor". Olhava pra ele surpresa, como então eu apanhava dele? Mesmo que raramente, eram mais ameaças. Seja como for, sentimo-nos vingadas. E eu aprendi uma boa frase para confrontar o irmão, nas brigas futuras.
MARIA LÚCIA MAZZEI DE ALENCAR
-Escritora, amante da boa literatura e de cinema;
-Vencedora dos segundo e terceiro lugar do prêmio Acesc de Literatura( Associação dos 20 maiores e tradicionais clubes da cidade de São Paulo ( com exceção dos de futebol);
-Aluna das Arcadas, ( Direito da Usp), formou-se em 1972,
-Aluna das Arcadas, ( Direito da Usp), formou-se em 1972,
Procuradora do Estado de São Paulo aposentada, atualmente Advogada.
Nota do Editor:
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