segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Um dia qualquer depois do Ontem





─ Para Ana Rosa, com saudades

Algumas curvas que este riacho chamado Caiuazinho fazia ainda consigo perceber. Mas não sei se devido a meus olhos gastos pelo tempo, elas me parecem levemente mudadas. Já outros pedaços dele, a vista não me ilude, desapareceram e me enchem de uma saudade lancinante, amarga. Aqui mesmo, onde eu e ela sentávamos com as pernas dentro d'água para que os peixinhos sonolentos viessem mordiscá-las, nada mais restou da touceira de bambus que guardava nossos segredos. O que vejo, agora, é uma ribanceira de capins-gordura secos de sol e abandonados pelas raízes.

Com uma tristeza de não ter jeito, sigo meu caminho pela margem, e paro aonde outrora havia um remanso. Nele, eu e ela nadávamos nus, as roupas largadas sobre as pedras (ainda não sei se de propósito ou ao acaso, elas estavam sempre misturadas, como se fossem uma só). E nadávamos, nadávamos, e esbarrávamos os corpos magricelos; e nos lavávamos um ao outro, a maldade distante como as montanhas que cercavam nossa cidadezinha.

Depois, eu e ela deixávamos este rio e, sorrisos abertos sob o brilho do dia, iniciávamos um sobe e desce pelas ladeiras das ruas. Era um perambular alucinado, sem outro fim a não ser estarmos juntos, mãos unidas, corpos colados e corações saltando aos pedaços.

Já tardinha feita, boquinha da noite, eu e ela íamos fingir rezar na Matriz da praça central. E fingíamos tanto, e tão bem, que o pobre padre cria piamente ─ como cria em Deus-Todo-Poderoso ─ que a nossa presença diária fosse devida a uma devoção cega ou a algumas promessas bem firmadas. Mas no fundo mesmo, com os nossos olhos cerrados, estávamos revivendo todas as horas, todos os minutos, todos os segundos do nosso apaixonado viver!

Me lembro bem que naquele tempo, cortando a cidadela todinha, havia uma estrada de ferro que vinha não sabíamos de onde, mas que chegava quase pertinho de São Paulo, pelo que diziam todos. (Eu e ela nos divertíamos vendo o trem passar com seus vagões desengonçados,  vendo a fumaça da locomotiva desenhar nos céus coisas sem nexo algum).

Certa feita, quando o trem já desaparecia na curva, ela gritou:
— Sou a princesa deste Reino! Lá se vai a minha carruagem!
— E eu sou seu criado, Alteza ─ retruquei, bonachão.
— Idiota... ─ ela me disse, muito séria ─ princesas não têm criados; elas têm príncipes encantados!... E é isso que você é: meu príncipe encantado!

Eu me recordo que a minha meiga princesa não tinha manto real. Tinha só um simples e largo vestido de chita, surrado pelo tempo de uso,  sempre encardido pelos nossos folguedos. Lembro-me bem que quando os ventos endiabrados de nossa cidadezinha nos açoitavam, seu vestido se erguia e deixava à mostra pedaços marotos de suas pernas finas, fazendo meus olhos se encherem de graça e o meu coração pequeno arder em fogo intenso.

Eu me lembro, também, (ai!.. Deus meu, como me lembro!...) que certa feita ela partiu em sua carruagem de ferro para nunca mais voltar. Acreditei na época e com muita dor, que ela só estivesse brincando por entre as nuvens que se misturavam à fumaça da sua locomotiva e aos recantos do nosso riacho.

... Mas tudo isso foi ontem! Um ontem que de tão distante fez-se velho e, com ele, fez também envelhecer nossa cidadezinha, nossos encantos, nossas ternuras e nossas vidas.

POR LUÍS LAGO











- Acriano, por criação ─ Paulistano, por adoção ─ Cearense, por paixão;
- Cronista, por obsessão ─ Artista plástico e fotógrafo, por distração ─ Psicólogo, por formação e

-Autor de "O Beco" (poesias) e de "São tênues as névoas da vida" (romance EM estilo de "realismo fantástico")

Nota do Editor:


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4 comentários:

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    1. Muitíssimo grato, minha Amiga Sheyla. Você é muito gentil e generosa. Beijos!

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  2. Belo texto, sua leitura nos faz viajar pelo tempo.

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    1. Muito grato pelo gentil comentário, meu Amigo Eli. Esta crônica é um pedaço do meu passado (assim como todas as demais que desenvolvi) . Bem por isso, ela também me faz viajar pelo tempo. Cada vez que a releio, me emociono e choro. Sempre! Um ABRAÇO, Eli. Obrigado, mais uma vez.

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