segunda-feira, 25 de março de 2019

A Nuca do Povo


Autor: Rafael Canto(*)


Quando fiz doze anos eu comecei a sair sozinho, tinha a permissão dos meus pais, e não era para ir ao centro da cidade onde eu resido até hoje, era para ir ao centro do Rio de Janeiro, Central do Brasil. Curso para a escola militar, todos os sábados, bem em frente a Central, quase duas horas dentro do ônibus, lendo ou estudando, estudava 4 horas e voltava para casa, sem desvios, sem aventuras, exceto a que eu já estava vivendo de poder transitar sem supervisão de um adulto. 

Como não queria perder essa confiança eu me ative as regras estabelecidas anteriormente, sempre na hora, sempre em tempo e quando dei por mim eu transitava para todos os lugares da cidade sozinho, na casa de meus tios e tias e isso prosseguiu por todos os meus anos até minha idade adulta sem nenhum problema ou incidente. 

Eu atrasava 2 horas para buscar farinha na esquina, mas nunca fazia isso com as saídas para longe, fosse visita a familiares ou compromissos de estudo. Isso tudo antes de celulares com contato e supervisão digital constante. A rua nunca me assustou, mas as pessoas, ah elas me fascinavam e espantavam.

A cada nova forma de me locomover pela cidade ao longo dos anos eu observava o movimento das pessoas, suas variedades, cores, sons e roupas. Como milhões de formigas se movendo sem as ordens de uma rainha, algumas seguindo o fluxo de outras, engrossando e afinando linhas de seres humanos, brevemente observáveis por mim em seus momentos de confinamento temporário no transporte público.

Pequenos hábitos, atitudes, estados de humor e parafernálias das mais diversas. Gente correndo apressada de um lado para o outro passando por pessoas de ritmo mais calmo e relaxado, mas ainda assim no fluxo desse oceano de gente. Conforme fui crescendo, cada vez mais passei a me integrar nesse mar de gente, e por mais que as observasse milhares de pessoas, descreverei apenas meus comportamentos e hábitos enquanto usuário de transporte público. 

Quando mais novo eu me imaginava mais velho, com carro, vida resolvida, uma família para cuidar, rotinas e outras preocupações...

Eu estava bem errado, e por conta disso eu rodei pelo estado inteiro de ônibus, trem, metrô, barcas e a pé. Uma bicicleta ou outra ocasionalmente. Ônibus, o primeiro de todos, me criou o hábito de saber os horários que eles passavam e imediatamente eu aprendi que tudo se trata de tempo. 

Tempo para chegar, para sair, para me arrumar, para economizar e me distrair, mas como organizar isso na minha vida? Sempre adorei ler, e desde minha primeira saída eu carreguei um livro comigo, e aí veio a distração, seguido pelo "eu acho que se eu encostar aqui eu durmo meia hora"; músicas então, cada uma me levando para um momento distante e diferente do que eu me encontrava. Passei a fazer tudo que me fosse possível fazer dentro de um ônibus: escrever, ler, dormir, jogar, conversar e relaxar. Carrego essas sensações e atitudes até hoje, como um script que chega a me irritar quando não é seguido, isso tudo antes dos smartphones e ar-condicionado obrigatório na maioria da frota. 

Das barcas eu gostava e ouvia música sempre em pé, na parte da frente da embarcação, sentindo o cheiro do mar e sentindo o vento no rosto e considero a melhor forma de chegar em Niterói.

Mas nos trens foi onde mais passei por situações inusitadas, a começar por entrar. Isso, apenas entrar já era uma atividade extenuante. 

Corrida seguida de luta-livre e no fim uma dança da cadeira com as maiores e esquisitas crianças que você já viu. E cada brincadeira da minha infância passou ser uma lembrança de um treinamento de aquecimento para a vida adulta. Sentou? Vai dormir e descansar um pouco. Perdeu? Vai em pé para casa segurando o peso do corpo com uma mão e um livro entre os dedos da outra, apertado entre todos, suando, esquivando dos ambulantes que providenciavam imensa sorte de petiscos, bebidas, picolés, revistas, elásticos, linhas de costura, balões, brinquedos, ralo de cozinha, laticínios, embutidos, remédios, cachorrinhos e tartarugas; claro, tudo por um preço módico. 

O caminhão que virou a promoção chegou. Pedintes, rodas de carteado e eu, dormindo no bagageiro das mochilas(aquelas grades acimas dos bancos) por uma aposta de 10 reais. Ganhei a aposta. O Rio é uma festa! 

Os anos passaram e a necessidade diária do metrô se fez presente na minha rotina e aí foi quando meus anos de experiência no trem já estava à todo vapor, várias coisas poderiam dar errado, logo andava sempre com mochila e ela passou a ser parte de mim, sinto-me nu sem ela, estranho e desengonçado. 

Carregava junto de mim sempre diversos itens: carteira(xerox autenticada em cartório, afinal moro no Rio de Janeiro), lenço, camisa e cueca extra, toalha de rosto, escova de dentes, fio dental, pasta dental, preservativo, aspirinas, estojo com todo o tipo de material de escritório, garrafa d'água, carregadores de baterias, papéis de faculdade, guarda-chuva e sempre um livro.

 Se vai para mais de 50 kilometros longe de sua casa leve o que vai precisar, o excesso nós cortamos e o que falta nem sempre podemos comprar ou criar no meio da rua. E faça com esse peso o triathlon do povo: se arrume, corra para o ponto, 45 minutos até o metrô, 10 minutos comprando passagem e andando apressadamente até a plataforma, 40 minutos de viagem, se posicione em frente a porta do meio do quarto vagão por que vai abrir na frente escada-rolante(que vou subir correndo de dois em dois degraus), mais 10 minutos mudando de plataforma se apressando para chegar primeiro, para entrar primeiro. 

9hs em ponto, trabalho, almoço, trabalho, agora vamos para a casa com calma... ERRADO! Eu tenho um recorde para quebrar! O tempo passa, minutos e horas contadas que não voltam, então corra para viver lá fora ou perca tempo esperando aqui dentro. 

Correndo para retornar para namorada, familiares, amigos, respirar fora desse ambiente em que sou obrigado a me distrair com um livro enquanto os gritos de um vocalista de power metal abafam todos os sons do ambiente que me cerca, de seres humanos espremidos sem precisar se esforçar em estar de pé, pois são uma massa única de gente e meu livro segue semi-apoiado nas costas de um senhor de 40 e poucos anos que parece nem mais ligar. Na volta terceiro vagão, porta do meio, escadas à frente, corra e pule, primeiro vagão, porta do meio, evite lugares reservados mas ceda o lugar a quem precisar. Durma se estiver sentado, leia se permanecer em pé. Música sempre. São leis não escritas e sagradas. 

Na maioria dos dias eu conseguia e chegava em casa com meia hora mais cedo para ter um pouco mais de controle sobre a minha vida, e nos melhores dias conseguia 50 minutos de volta resgatados pela minha pressa e meus tiques no trânsito. Encaixava cursos, trabalhos extras, uma saída ocasional, um encontro, um cinema; ou apenas ficava em casa e relaxava. Tirava o máximo que eu podia de cada momento da melhor maneira que eu podia. 

E haviam os outros dias, em que simplesmente eu perdia, que cansava, e no mar de trabalhadores, estudantes turistas e transeuntes aleatórios que se empurravam para correr ou apenas se deixavam levar pela inundação da turba cansada nas escadas, e eu olhava para cima e entendia pela primeira vez do que eu fugia e falhava em escapar, mesmo que corresse o máximo e fosse o primeiro... Eu também fazia parte da nuca do povo. O movimento das cabeças subindo e retornando ao lar, cada um com suas manias, aparatos, planejamentos, querendo o mesmo: descanso e um pouco mais de tempo. Um entre milhares. Todos dias. Sempre.

* RAFAEL CANTO













-Fotógrafo e escritor:
-Estudou biblioteconomia na UNIRIO.

Nota do Editor:

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2 comentários:

  1. Pois é meu Bro, muutos e muitos por aqui se identificariam com essa nuca do povo, e exatamente dessa forma. Ao longo do tempo aquela batalha para acreditar que somos diferentes vai ficando sem sentido, afinal não há batalha nenhuma. Texto muito divertido, parabéns.

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  2. Muito interessante a visão do cotidiano desde menino, aos dias de hoje... Em alguns momentos, tive que rir, ao me ver nas mesmas situações. Um texto leve e despretensioso, gostoso de ler.

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