sábado, 22 de janeiro de 2022

Memórias de um Velho Esquecido




 

Autor: Genildo Fonseca(*)

Já não me lembro de muita coisa e de muitos acontecimentos não consigo esquecer.

As lembranças aparecem embaralhadas como trechos de sonhos; às vezes fica difícil recuperar uma palavra. Seria o prenúncio do Alzheimer ou um lapso normal da memória enfraquecida pra quem chegou aos 76 anos?

Já não faço palavras cruzadas, nem exercícios regulares mas ando o dia todo pra cima e pra baixo.

Sinto que é hora do desapego, afinal o futuro é imprevisível e diminuiu de tamanho.

E a dor de dente da semana passada que me castigou por 3 dias e o tombo que levei batendo a cabeça no chão quase sem condições de voltar?

Será a melhor idade essa em que nos tornamos mais fracos, exigentes e reclamões?

A gente quer mais um dia agradável em companhia da justiça, leveza e liberdade .

Longevidade é bom mas exige cuidados .

Árvores plantei muitas e outras derrubei por extrema necessidade, filhos são três e mais 3 netos, livro nem pensar.

Bom mesmo é não abandonar o sonho, não importa o tempo que sobre.

Dormi pouco e já cumpri a rotina diária: medi a glicemia em jejum, fiz o café e a salada de frutas, lavei a louça, tomei os 3 comprimidos da manhã e ainda faltam três.

Quando dá tempo a gente almoça. A Marilu sempre prepara uma comidinha leve e gostosa. Gosto muito quando ela faz aquele arrozinho com rapa na panela de barro, com muito alho e cebola e uma tilápia empanada e quando possível, um tinto chileno. Quando não dá tempo, a gente vai de marmitex do Bar do Alê que entrega em casa.

Quase não jantamos. À noite intercalamos o noticiário das tragédias constantes, desgoverno, aumento da inflação e do contágio com séries e filmes, alguns já vistos.

Ar puro, cercado de verde, saguis, esquilos, borboletas, tucanos, aranhas, marimbondos e taturanas, o que incomoda é o apito nervoso e insistente do trem que passa carregado de commodities para a China.

Antes era romântico ouvir o apito distante e suave da locomotiva.

Pra piorar, o que inferniza o amanhecer na chácara é o latido de mais de 30 cachorros do canil ao lado.

Mas é nosso cantinho onde recebemos os hóspedes de todas as partes que adoram a energia do espaço e costumam dar nota máxima.
O Espaço Viverde, além dos equipamentos de lazer, como tirolesa, piscinas, escalada, sinuca tem ainda " O Recanto do Poeta" dedicado a Vinicius de Moraes, com a cadeira que ele utilizou nos últimos 10 anos de shows e exposição de suas obras.

Ficamos de plantão. Aprendi a consertar algumas coisas, a trocar lâmpadas e gás, a usar a wap, mexer no gerador. Estou quase apto a receber um diploma de caseiro, uma vitória pra quem era tão limitado nestes afazeres.

É nossa sobrevivência, o aluguel permite pagar as contas básicas.

Com a chegada da Covid em 2020, eu que trabalho com shows há mais de 50 anos, tive que cancelar 70 com Toquinho no Brasil, Europa e Irã.

Agora que tínhamos a esperança do recomeço, voltamos ao ponto zero: todos os espetáculos de janeiro e fevereiro foram suspensos.

O stress só não é maior porque alguns amigos da Fadusp me orientaram como enfrentar a fúria dos bancos.

Também o que ajudou foi instalar o aplicativo "não me perturbe".

Ficamos isolados, o que nos protegeu de um lado mas o vazio da solidão é imenso.

Foi uma enorme vitória ter entrado na São Francisco em 1966, o primeiro de 14 irmãos a ingressar numa Faculdade.

Saí do Estadual da Penha e sem cursinho, tive este privilégio." A Paz mantida pelo terror mútuo" foi o tema da redação.

Mas não aproveitei o que aprendi. Era um aluno relapso, dormia na aula, vivia trocando de períodos por conta das viagens na área artística.

Fui buscar o diploma 5 anos depois e a carteira da OAB sem exame quando Collor assumiu o poder.

Após sermos despejados por falta de pagamento da quitinete, na baixada do Glicério (éramos 5 moradores e alguém sempre atrasava,)ouvi pela primeira vez a expressão " purgar a mora", levei o Antônio Marcos, em início de carreira solo, acho que em 1968 pra morar clandestinamente na Casa do Estudante: ele conquistou os boêmios do Ninho das Águias.

Em 69, fiz parte da Excursão dos Duros, minha primeira viagem internacional por 5 países, com 169 dólares.

Também fui figurante na peça " O Estado de Sítio" dirigida por Clóvis Bueno.

Tranquei matrícula em 69 e 70 e tive a sorte de me formar com a turma de 72.

Uma nota trágica ocorreu em 5 de novembro de 1977 quando meu irmão e sócio Juca viajava em meu lugar para um show com Fernando Lona no Teatro Paiol de Curitiba .

Os dois morreram após acidente na BR 116.

Lona, o parceiro de Vandré em "Porta Estandarte" dizia " Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim"...

Nasci na área rural de Echaporã.

Catei algodão e café ainda menino.

Fui engraxate, marmiteiro, office-boy, vendedor de livros quando me mudei pra Capital com 10 anos de idade.

No ano seguinte passei a morar num cortiço da V Sinhá em S. Miguel e lá conheci uns vizinhos interessantes que gostavam de música e poesia.

Foi aí que me tornei empresário artístico do Antônio Marcos.

Desde muito cedo, eu me apaixonei pelas artes. Varava o circo de lona pra ver o Globo da Morte, o Trapézio e as atrações musicais.

Em Echaporã vi pela primeira vez o Mario Zan e Cascatinha e Inhana, de quem me tornaria amigo , anos mais tarde na gravadora Continental.

Inesquecível a despedida de Inhana quando todos choravam e cantavam: “Meu primeiro amor”
“Foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”

Também marcante nesta experiência de produtor musical foi ter realizado " A Grande Noite da Viola", em junho de 1981,com os mais expressivos nomes da música.

sertaneja, entre os quais, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho e o iniciante Almir Sater, com o Maracanãzinho lotado para surpresa de todos já que ninguém imaginava o Rio recebendo pela primeira vez um Festival deste segmento.

Há muita coisa pra lembrar e há outras que é melhor esquecer.

Bom viver mais tempo com saúde, o apoio da família, cercado de amigos e novos desafios.

Importante não ser fardo, nem um alívio mas deixar saudade ainda que por pouco tempo.

Somos tão insignificantes e pretenciosos.

Só ficar mais velho não vale a pena.

Vale a pena ser feliz!

GENILDO GONSECA














Advogado formado pela Universidade de São Paulo (1972) – OAB/SP  99201;
Produtor:
Áreas de atuação: Produção de shows, peças de teatro, coordenação e apresentação de eventos, marketing cultural e gerenciamento de negócios;
Sócio e diretor da empresa  Circuito Musical e
Empresário artístico, produtor e assessor jurídico de Toquinho e outros artistas.

Nota do Editor:

Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores.

5 comentários:

  1. Respostas
    1. Meu caro Wagner, amigo e parceiro de longa data
      Você faz parte de grande parte desta caminhada
      Pretendo criar o Blog do Gê, pra falar de amizade e parceria
      Está convidado!

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  2. Grande GENILDO, que soube crescer com dignidade e muito esforço. Sempre companheiro, gentil e trazendo esperança a todos nós, os mais pobres da turminha da época do primário, seja pela sua luta, que sempre víamos, seja pelo incentivo que nos passava. Amigão do Grupo Escolar de Vila Sinhá, da Turma dos Sete, do Nitro Química e de tantos outros episódios, está no auge da sua carreira, sem velhice alguma, apenas idoso, como todos nós, seus brothers. Seja feliz companheiro. Viva a vida, pois ela começa para nós todos os dias!!! Abração do Gibi.

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  3. Li toda a sua história. A cada trecho pude constatar fatos em comum, por ex. Idade, nascida no interior, bacharelado no Colégio da Penha, curso de Direito, morar em chácara, etc, etc. Parabéns pra nós por tudo que já vivemos!

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  4. Grande amigo Genildo!
    Fiquei muito emocionada ao ler o seu texto.Alias,emocionar as pessoas faz parte de você, da sua alma delicada, e do seu espirito de menino levado.E uma honra ter você como meu amigo.
    Que possamos estar juntos ainda por muito tempo, para lembrar das coisas engracadas que compartilhamos, e rirmos como sempre fizemos! Seja feliz sim, voce merece! Bjs Tette da Bahia.👏👏👏👏

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