domingo, 5 de abril de 2020

Diário de quarentena


Autora: Tatiana Abdo(*)



Imagem feita pela autora do artigo


Estou no início da minha terceira semana em quarentena. Pensei em muitas coisas para escrever, sobre como ajudar as pessoas a passarem por essa fase de isolamento da melhor forma possível. No entanto, entendi que nenhuma dica sobre ser produtivo, manter-se ativo, seria novidade. Essas informações estão circulando em alto e bom tom em todas as plataformas disponíveis. Então resolvi fazer um diário que retrata um compilado de sentimentos e situações que tenho vivido e ouvido de pacientes, colegas e amigos, na tentativa de trazer um certo conforto ao leitor na medida em que se identifica com o relato.

Primeira semana: 
Está tudo muito bem. Assim como muita gente, por vezes pensei em como seria bom trabalhar de casa. As obrigações de ir e vir diminuíram ou simplesmente não existem mais, e fica uma sensação de "mini férias". É claro que é preocupante o que está acontecendo, mas ainda parece distante e estar em casa é gostoso. Como se fosse um sonho do qual logo irei acordar e nada disso terá importância.

Fiz minha sessão de terapia e ainda tinha histórias a serem contadas de uma liberdade que foi perdida assim sem mais. Falei sobre coisas que aconteceram quando ainda eram permitidos os encontros, os abraços, os beijos... Foi ao final da sessão que me dei conta que nada disso seria possível por um bom tempo, mas logo esse pensamento se esvaiu.

Durante essa semana, dei risada, vi e compartilhei memes, adorei as lives e ideias artísticas que começavam a surgir. Pensei em como o mundo poderia ser melhor. As pessoas estão unidas e falando em amor e união. Enfim... Tá tudo bem.

Segunda semana: 
Já não está mais tudo tão bem. Começo a entender que não sei até quando vai essa coisa de confinamento. Penso nos projetos e romances que foram interrompidos. O medo aparece. Como vai ser daqui para frente? Mas ainda tenho em mim um alento ao pensar que tudo vai voltar a ser como era antes quando a quarentena chegar ao fim.

Na minha terapia, falo sobre a continuidade dos projetos e dos sonhos quando tudo isso acabar, como se esse "acabar" fosse ser amanhã. Ao final da sessão, percebo que talvez esse amanhã seja daqui a muito tempo, ou simplesmente nem exista mais, pelo menos da forma como gostaria que fosse. Apesar de tudo estar parado, sinto que o meu tempo subjetivo tem rodado rápido demais.

A verdade é que estou puta com esse inimigo invisível. Meu sangue ferve e sinto raiva. A minha vontade é de gritar o mais alto possível. Eu só queria continuar com a minha vida em que sempre fui meio produtiva, seguia mais ou menos uma rotina, mas tinha planos, tinha sonhos, e de repente.... Tudo parou.

As recomendações da organização mundial de saúde sobre a saúde física e mental são claras.... Estabeleça uma rotina, leia, estude, atividade física, seja produtivo etc... Começo a colocar algumas coisas dessa lista em prática, mas confesso que nem sempre faz muito sentido. Afinal... eu ainda acho que estou bem e ... é só uma fase não? 

Terceira semana: 
Acordo irritada... mais uma segunda-feira e tenho pela frente dias iguais... Olho em volta e as paredes são as mesmas e são elas que vão me acompanhar durante toda essa jornada. Tenho vontade de jogar tinta nelas só para mudar esse cenário estático ao meu redor. Sei do privilégio de tê-las, mas isso não diminui meu sofrimento.

Assisto ao jornal, como faço todas as manhãs, e vejo uma balbúrdia de informações confusas e contraditórias. Será que vai passar logo? Falam em 2 meses, 4, 6,... Onde vai parar?

A sensação agora é outra. Penso nos meus familiares, pais, avós e sinto medo. Não posso vê-los, para abraçar e confortar, acho que confortar mais a mim do que a eles. São grupo de risco. Sei que um dia eles não estarão mais aqui, mas não queria que fosse assim... tão cedo. Confesso que chorei.

Sigo fazendo terapia, e não sei se tenho o que dizer. Não tem nada de novo, só de trágico, de paralisia... Mas é justamente isso o que tenho a dizer... Um momento de desabafo, de poder falar que existe amor no mundo, mas que você está com raiva, com medo e só queria que tudo isso fosse um pesadelo.
Lendo esse relato, começo a identificar um processo de luto. Dói, mas uma hora teremos que aceitar a mudança. Olhar para frente e pensar no que pode ser feito do nosso futuro, dentro das condições em que nos vemos hoje. É claro que vai melhorar. Não viveremos confinados dessa maneira para sempre, mas muita coisa vai ter que ser transformada. O que tínhamos já não existe mais e terá de ser repensado.

Vejo as pessoas comentarem sobre reencontros e festas e abraços quando a quarentena acabar, mas não será bem assim. A retomada será aos poucos, pois o contágio não vai desaparecer do dia para a noite. Teremos que ressignificar as relações. O que pode ser positivo, quando pensamos que daremos mais valor aos encontros, aos toques, às trocas. Podemos sim caminhar para um mundo melhor.

Nesse meio tempo, não se cobre tanto. Está tudo bem passar um dia inteiro na cama, ficar sem tomar banho, sentir raiva de tudo. Permita-se, mas não todo dia... Afinal, a roda da vida não pode parar. É fato que muita coisa vai mudar e não sabemos muito bem como vai ficar. Mas sabemos que existe um futuro, seja ele como for e somos capazes de nos transformar e adaptar, mas precisamos estar preparados e, na medida do possível, manter o corpo e a mente sãos.

Por isso, não desista. Por mais difícil que seja, tente. Tente do seu jeito, mas não deixe o derrotismo tomar conta de você. Lute e procure fazer o melhor que conseguir nesses dias de confinamento.

Saiba que está todo mundo no mesmo barco. E se precisar de ajuda, nem que seja só para desabafar, tem muita gente disposta a ouvir: psicólogos e serviços de acolhimento, amigos e familiares. Seja como for, procure ajuda se sentir que está difícil demais.

Não podemos estar juntos fisicamente, mas temos a tecnologia a nosso favor. Use e abuse dessas ferramentas para conectar-se com quem você ama.


Cuide-se, lave as mãos e fique em casa! 

Um abraço virtual dessa que vos fala.

TATIANA H. ABDO - CRP 06/87427











- Formada em Psicologia pela PUC-SP (2006), em Música pela EMESP e pós-graduada em Psicodrama.
- Durante sua trajetória, trabalhou na área da saúde em instituições como Hospital das Clínicas, CAPS e NASF; na área de recursos humanos como Consultora em assessment e R&S de executivos e no terceiro setor com orientação vocacional.
-Atendimentos apenas ONLINE (enquanto durar a pandemia)
Contato: (11) 99974-9694 / tatiana.abdo@hotmail.com
 - Além de articulista neste Blog, possui um site onde explora outros temas relacionados à psicologia. (www.tatianaabdo.wix.com/psicologia)

 Nota do Editor:


Todos os artigos publicados no O Blog do Werneck são de inteira responsabilidade de seus autores. 

6 comentários:

  1. Realmente, uma realidade diferente e que veio bater de frente.
    Me fez lembrar qdo inaugurou o metrô e era uma super transformação ir trabalhar de metrô, nos primeiros momentos, depois, todo dia naquela "caixinha", sem paisagem, sem conversas, era de enlouquecer...
    Mas, acostumamos e a cada dia nos tornamos mais loucos.

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  2. Adorei sua reflexão estamos todos meio perdidos dentro de nós mesmos o medo nos assombra, a morte está perto demais tudo isso é assustador mas acredito que ao final de tudo isso Vamos levantar e recomeçar lentamente e com outra visão de tudo. Bom dia é bom final de semana

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  3. Desculpe-me! levantar e recomeçar o quê? Enquanto estamos confinados em casa, as empresas fechadas, falindo, aqueles que dissiminaram o caos estão deitando e rolando sobre nossos cadaveres economicos... meu Deus ninguém ainda percebeu que isso tudo não passa de um golpe de mestre que está em andamento e dando muito certo!

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  4. Ótima reflexão!!!
    Estamostodos com sentimentos semelhantes, afinal é o mefo da morte e a angustia do sofrimento nosso e dos que nos rodeiam.
    Mas quando tudo passar, pois vai passar, com brevidade ou não, espero que haja um crescimento da nossa visão em relação a nós e ao proximo, enfim em relação à vida.
    Abr.

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  5. Ótima reflexão!!!
    Estamostodos com sentimentos semelhantes, afinal é o mefo da morte e a angustia do sofrimento nosso e dos que nos rodeiam.
    Mas quando tudo passar, pois vai passar, com brevidade ou não, espero que haja um crescimento da nossa visão em relação a nós e ao proximo, enfim em relação à vida.
    Abr.

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  6. Me vi em muitos momentos aqui mas, mais importante, identifiquei em mim uma raiva hiperbolizada pela situação que vivemos. E é tão tranquilizante a gente se lembrar que é ser humano e que tudo bem se sentir inseguro e com medo, é até natural... Enfim, muito obrigada pelo lembrete. Acabo de ler ser texto sentindo meus pés no chão.

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